Crenivaldo Veloso recebe menção honrosa por tese sobre Heloisa Fénelon

Você sabe quem foi Heloisa Fénelon? Seria necessário escrever uma tese de doutorado para resumir e analisar a trajetória da antropóloga, artista, pesquisadora, professora e curadora de coleções etnográficas que por quase 40 anos se dedicou ao Museu Nacional/UFRJ. E foi isso o que fez o servidor do nosso quadro técnico-administrativo, Crenivaldo Veloso, que atua como historiador. Por essa pesquisa, ele acaba de receber uma Menção Honrosa no Prêmio Melhor Tese de Doutorado em História das Ciências, concedido pela Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC).

Crenivaldo Veloso, historiador e servidor do nosso quadro técnico-administrativo do Museu Nacional/UFRJ. Foto: Francisco Moreira da Costa

Defendida em 2021 no Programa de Pós-Graduação em História da UNIRIO, a tese contou com a orientação da professora Heloisa Maria Bertol Domingues. O objetivo foi analisar a trajetória de Heloisa Fénelon no campo da antropologia do Museu Nacional. Ela apresenta dois eixos principais. No primeiro, Veloso busca esmiuçar as circunstâncias da produção da tese primeira tese de Fénelon, “A Arte e o Artista na Sociedade Karajá”. Já o segundo eixo é sobre a sua carreira no Museu Nacional/UFRJ, entre as décadas de 1950 e 1990. Ele analisou como a professora elaborou estratégias para colocar em prática um tipo de antropologia que, até então, não era tão valorizada pela fração do campo antropológico de viés social que se consolidou na instituição.

O pioneirismo de Heloisa Fénelon

Heloisa Fénelon iniciou seus trabalhos de campo em 1957. “Eu considero que Heloisa foi protagonista e pioneira na Antropologia em vários aspectos: uma mulher indo sozinha para um trabalho etnográfico em terras indígenas, sendo, a meu ver, algo inédito pelas condições, abordagens e por tudo o que ela propõe do ponto de vista teórico-metodológico, entre outros aspectos”, avalia Veloso. Formada em Pintura pela Escola Nacional de Belas Artes, o seu ingresso na Antropologia ocorreu em 1956, como estudante do Curso de Aperfeiçoamento em Antropologia Cultural, no Museu do Índio, tendo a coordenação de Darcy Ribeiro e recebendo orientações de Luiz de Castro Faria, Roberto Cardoso de Oliveira e Josildeth Gomes Consorte. Foi por esse curso que ela fez pesquisa de campo na Ilha do Bananal, localizada no Rio Araguaia, com o povo Iny-Karajá, em 1957.

 

Representativo: A indígena Koanajiki usando literalmente as lentes de Heloisa Fénelon

Heloisa retorna ao campo em 1959, já como naturalista e antropóloga contratada pelo Museu Nacional/UFRJ. “A partir desses dois trabalhos de campo, ela reúne e produz documentação etnográfica para a produção da sua primeira tese. Eu procurei esmiuçar as circunstâncias de produção da sua primeira tese, analisando as experiências de campo, a partir dos diários e cadernetas de campo, até então inéditos, entre outros documentos. Procurei entender como ela e os Inỹ-Karajá construíram relações, produzindo uma verdadeira etnografia da amizade, pautada nas relações éticas e respeitosas. Neste aspecto, analiso algumas situações específicas de formação de coleções que foram direcionadas ao Museu e se tornaram importantes materiais para as suas pesquisas”.

Veloso menciona que Heloisa organizou três tipos de coleções: de narrativas, de desenhos e de objetos. A coleta de narrativas se deu por meio da produção de documentos etnográficos, partindo da observação direta, de entrevistas e de relatos dos indígenas, buscando identificar histórias de vida, dados que eram registrados nos diários e cadernetas de campo. A coleção de desenhos em papeis, chamados de “livres” ou “espontâneos”, resultou da produção dos próprios indígenas. Heloisa reuniu essa coleção como uma expressão da arte indígena e como uma forma de documentá-la e estudá-la, o que seria, segundo Veloso, uma inovação metodológica para a Antropologia da época. E Heloisa também reuniu uma coleção de objetos, procurando compreender como os indígenas se relacionam com os aspectos materiais e imateriais, como entendiam, classificavam e atribuíam sentido às coisas.

O estudo de Heloisa sobre a produção material dos Iny-Karajá trouxe uma abordagem inédita. A antropóloga considerou os produtores como artistas e as suas produções como arte, procurando compreender o papel social dos artistas, neste caso, em especial, as mulheres. “Na minha pesquisa eu procuro entender como Heloisa desenvolveu uma etnografia da mulher Karajá, valorizando a análise não apenas dos aspectos coletivos, mas também identificando o que ela chamava de individualização da artista. Para a antropóloga, algumas mulheres se destacavam, produzindo inovações que passavam a ser copiadas por outras mulheres”. Veloso localizou informações sobre várias mulheres Karajá que se relacionaram com Heloisa no final da década de 1950. “Entre elas, está Koanajiki, considerada uma das mais importantes e valorizadas artistas produtoras das ritxòkò, as bonecas em cerâmica dos Karajá”, exemplifica Veloso. Aliás, entre os materiais do Setor de Etnologia e Etnografia (SEE) resgatados após o incêndio, estavam os fragmentos de uma dessas bonecas confeccionadas por Koanajiki, uma representação da dança do Aruanã. Veloso afirma que esses fragmentos se tornaram norteadores da escrita da sua tese sobre Heloisa Fénelon. “Posso dizer que a minha tese é sobre as trajetórias de uma ritxòkò, da coleção a qual ela foi incorporada, das circunstâncias de produção dessa coleção e da pesquisa antropológica a ela relacionada e da pesquisadora que deu sentido a tudo isso”, considera Veloso. Cabe ressaltar que as pesquisas de Fénelon foram importantes referências para o processo de registro dos saberes associados aos modos de fazer as bonecas Karajá pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 2012.

Ritxòkò, as bonecas em cerâmica dos Karajá, do acervo Setor de Etnologia do MN/UFRJ. Foto: João Maurício

Além dos diários de campo, os diários de memória de Heloisa, registrados na década de 1980, também foram lidos e estudados por Veloso. “Através dessas anotações, foi possível entender um pouco mais sobre a vida da antropóloga, envolvendo questões pessoais, profissionais e políticas”, afirma o historiador. Numa passagem mencionada por Veloso, por exemplo, Fénelon comenta sobre a morte de Tancredo Neves, escrevendo no diário que a internação do político a fazia lembrar de sua mãe. No mesmo registro, a antropóloga relatou a pesquisa que estava desenvolvendo em casas de umbanda e de candomblé do Rio de Janeiro e, também, sobre as aulas que ela daria no dia seguinte, no Curso de Especialização em Arqueologia no Museu Nacional. Em outras passagens, Veloso percebeu que a vida pessoal da antropóloga foi bastante abalada com as enfermidades e o falecimento de sua mãe, no início dos anos 1980. Os relatos sobre as doenças da mãe registravam o sentimento de culpa por não ter se dedicado mais aos cuidados com a mãe. “A questão de gênero não está explícita, mas eu vejo implicitamente nos seus relatos. Dificilmente um homem faria este tipo de questionamento sobre a própria carreira”, avalia Veloso. Vivendo esses questionamentos sobre as próprias escolhas, Heloisa Fénelon concorreu e foi aprovada para o cargo de professora titular no Museu Nacional/UFRJ, em 1986. Toda a documentação pesquisada por Veloso foi fotografada e, em breve, irá compor os acervos digitais do Setor de Etnologia e Etnografia (SEE) e da Seção de Memória e Arquivo (SEMEAR). 

Ao olhar para a trajetória de Heloisa, conhecemos nossa história

Heloisa Fénelon chegou ao Museu Nacional/UFRJ em 1958. No curso que ela fez no Museu do Índio, um de seus professores foi Luiz de Castro Faria, responsável pela então chamada Divisão de Antropologia e Etnografia do primeiro museu brasileiro. Veloso considera que a sua contratação fez parte de um processo de reorganização do campo antropológico na instituição, coordenada por Castro Faria na década de 1950. “O próprio Castro Faria dizia que entre as décadas de 1920 e 1930, duas antropologias poderiam ser observadas no Museu Nacional: uma de viés biológico, então chamada de Antropologia Física, e outra de viés cultural”, destaca. Veloso explica que, até aquele momento, boa parte dos antropólogos que ingressavam no Museu Nacional eram formados em Medicina ou em História Natural. Sobretudo a partir do final da década de 1930, passam a fazer parte também profissionais e estagiários com outras formações, principalmente de áreas vinculadas ao que viria a ser chamado de ciências humanas, como Castro Faria, oriundo do Curso de Biblioteconomia e do Curso de Museus, e Eduardo Galvão, que cursou graduação em Geografia e História. Veloso considera que a criação de universidades e das faculdades de filosofia exerceram forte influência nessas mudanças.

Para Veloso, quando Castro Faria assumiu a chefia da Divisão de Antropologia, colocou em prática um grande plano de reformulação, que pode ser observado na criação do Setor de Linguística e da Seção de Antropologia Cultural e na contratação de nomes como Roberto Cardoso de Oliveira e Berta Ribeiro, vinculados à rede de sociabilidade de Darcy Ribeiro e do Museu do Índio. “Roberto Cardoso ficou responsável pela Seção de Antropologia Cultural, enquanto Berta assumiu os trabalhos com as coleções etnográficas”, informa Veloso. A contratação de Heloisa Fénelon, em novembro de 1958, ocorreu após o pedido de exoneração de Berta, que seguiu com Darcy Ribeiro, então seu marido, para Brasília, onde participaram da criação da UNB. Para o historiador, Roberto Cardoso reuniu uma rede de sociabilidade que constituiu e consolidou os cursos de formação e a disciplina de Antropologia Social. Depois de um Curso de Especialização oferecido em três edições – de 1960 a 1962 –, em 1968, com a participação de Castro Faria e David Maybury-Lewis, houve a criação do Curso de Mestrado em Antropologia Social, dando início ao Programa de Pós-Graduação (PPGAS), que ao longo do tempo se tornou um dos mais importantes do país.

É ressaltado por Veloso que, na condição de antropóloga e ocupando cargo de professora, Heloisa Fénelon não fez parte dos cursos de Antropologia Social no Museu Nacional. Do ponto de vista da pesquisa, a sua carreira antropológica tomou por base os estudos de arte e de cultura material como ferramentas teórico-metodológicas para as pesquisas antropológicas, o que, na visão do historiador, não tinha o mesmo grau de reconhecimento por parte das redes que constituíam a Antropologia Social na instituição. Segundo Veloso, a arte, os objetos materiais e os aspectos imateriais das culturas e sociedades estudadas seriam os meios através dos quais Fénelon desenvolveu as suas investigações sobre organização social, relações de parentesco, mitos e outros temas.

“O que ficou mais evidente em sua carreira foi a atividade de curadoria das coleções etnográficas, exercida a partir de 1964. A sua experiência docente foi vivenciada em cursos de especialização, como o de Arqueologia, nos anos 1980, e o de Botânica, nos anos 1970, além da Escola de Belas Artes, onde ingressou em 1974, criando disciplinas de Etnografia da Arte e de Antropologia da Arte. Nessa mesma Escola, Heloisa ajudou a criar e fez parte do corpo docente do Curso de Mestrado em Artes Visuais, a partir de 1985”, enumera o historiador Crenivaldo Veloso.

Uma atividade de formação desenvolvida por Heloisa no Museu Nacional/UFRJ foi a orientação de estágios. Segundo Veloso, Castro Faria considerou que o fato da professora ter orientado mais de 40 estágios em pouco mais de vinte anos teria sido “uma forma peculiar de docência” e que essa docência não teria sido “devidamente ressaltada”. Foi a partir dessa observação que Veloso tentou compreender o que motivou Castro Faria a fazer esse comentário; a entender qual seria a peculiaridade da docência de Fénelon e qual seria a forma não peculiar, corriqueira; a identificar quem teria o capital simbólico para definir quem seria e quem não seria “devidamente ressaltado”, reconhecido, destacado no campo antropológico do Museu Nacional. Recuperando uma frase de Castro Faria, ao afirmar que essa docência de Fénelon seria um verdadeiro “artesanato da produção acadêmica”, Veloso deu título à sua pesquisa sobre a trajetória de Heloisa Fénelon. Você poderá conhecer um pouco mais sobre essa importante antropóloga do Museu Nacional/UFRJ na tese do Veloso, que está disponível on-line.

Saiba mais:

Acesse a tese de doutorado “O Artesanato da Produção Acadêmica”: histórias, coleções e saberes na trajetória de Heloisa Fénelon“, disponível em PDF.

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