Escavações em fazenda na Ilha do Governador revelam dinâmicas de consumo do século XIX

Com vista para a Baía de Guanabara, a Fazenda São Sebastião foi ocupada a partir da década de 1840 pela família da Viúva Amaral, que foi sogra de Chiquinha Gonzaga. Na mesa da casa principal, as refeições eram servidas em faianças europeias decoradas com motivos florais e pastoris. Essas e outras pistas sobre as preferências de consumo dos ilustres conhecidos e dos ilustres desconhecidos que transitaram nesse sítio arqueológico na Ilha do Governador estão sendo reveladas pelo arqueólogo Luan Ouverney. Ele é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (PPGArq) e pesquisador do Laboratório de Arqueologia Histórica do Museu Nacional/UFRJ.

Vestígios de preferências de consumo na Fazenda São Sebastião no século XIX. Foto: Diogo Vasconcellos (MN/UFRJ)

Com o título “Fluxos de Mercadorias e Práticas de Consumo na Fazenda São Sebastião – RJ, Século XIX”, essa pesquisa tem a orientação do professor do PPGArq, Marcos André Torres de Souza.

Doutorando do Museu Nacional/UFRJ, Luan Ouverney, no sítio arqueológico

“O nosso interesse é, a partir do cruzamento dos dados do material arqueológico, dos documentos e da cartografia, pensar o cotidiano das pessoas que circulavam na Fazenda. Até agora sabemos que, em termos de atividade econômica, era produzido cal, assim como em outras fazendas da Ilha do Governador. Havia também produção de hortifrutigranjeiros e de gado, mas para o consumo interno”, explica Luan Ouverney.

Vista da Fazenda São Sebastião para a Baía de Guanabara

Após o falecimento do comendador e proprietário das terras, o português Miguel Ribeiro do Amaral, sua mulher, Maria Isabel da Rosa Amaral, assumiu a administração da Fazenda por mais de duas décadas, ficando conhecida como Viúva Amaral.

Arqueologia do capitalismo

Já foram concluídos os estudos documentais e as escavações. Neste momento estão sendo feitas as análises, utilizando a perspectiva da arqueologia do capitalismo.

Escavação no sítio arqueológico da Fazenda São Sebastião, onde atualmente funciona o complexo militar da Estação Rádio da Marinha

“A partir da identificação e da análise dos artefatos — que são os utensílios ligados ao consumo cotidiano, tais como louças, vidros, cerâmicas, artigos religiosos, entre outros —, buscamos entender as relações estabelecidas entre o Brasil e outros países. Ao mesmo tempo, como elas impactaram na disponibilidade e no consumo na sociedade carioca, ampliando o conhecimento sobre um espaço e contexto singulares da história brasileira”, resume Luan.

Ele informa que nos achados arqueológicos estão sendo encontrados vestígios de produtos originários da Europa e de outros países do Norte Global, refletindo o processo de circulação de bens no mundo Atlântico e a inserção do Brasil no mercado consumidor mundial. Além de ter vista para a Baía de Guanabara, a Fazenda ficava localizada na foz do Rio Jequiá, tendo bem próximo a mais antiga colônia de pescadores do Rio de Janeiro.

“Pretendo também elencar e pensar na “biografia dos objetos”, ou seja, aqueles que foram produzidos, consumidos, trocados e descartados, conectando lugares e pessoas, tendo uma carga simbólica, política, cultural e econômica”, avalia.

Achados arqueológicos para buscar entender as relações estabelecidas entre o Brasil e outros países. Foto: Diogo Vasconcellos (MN/UFRJ)
Achados arqueológicos para buscar entender as relações estabelecidas entre o Brasil e outros países. Foto: Diogo Vasconcellos (MN/UFRJ)

Para além da análise do material arqueológico estão sendo analisados documentos primários, tais como periódicos e outras fontes desse período. A Fazenda São Sebastião teve uma ocupação anterior, mas o foco dessa pesquisa é o século XIX, que é quando recebeu esse nome, sendo uma homenagem ao padroeiro da cidade.

Campanhas de escavação e trocas com o público

Na década de 1870, a propriedade foi adquirida pela Marinha do Brasil e poucas intervenções no local foram realizadas, o que contribuiu diretamente para a preservação do sitio arqueológico. Hoje, no local onde está a sede da Fazenda São Sebastião funciona o complexo militar da Estação Rádio da Marinha, no bairro da Cacuia. Quanto às campanhas de escavação, elas foram realizadas entre 2022 e 2023.

Luan em escavação na Fazenda São Sebastião
Luan em escavação na Fazenda São Sebastião

“Para mim, até agora, o impacto mais interessante foi a interação com as pessoas, de diferentes segmentos, que hoje circulam pelo local. Há uma relação afetiva com o prédio que é muito bonito e simples, em estilo colonial, e foi uma oportunidade poder mostrar para elas como é o trabalho de um arqueólogo. Foi interessante ver que algumas pessoas retornaram no ano seguinte para saber mais e levar amigos e parentes”, relata Luan Ouverney.

E foi desenvolvido um projeto educacional específico para crianças e adolescentes em cooperação com a Marinha. “Lembro de uma menina, filha de um oficial, que ficou tão impressionada com o que conheceu, que me perguntou se poderia levar o pai, e o levou no dia seguinte”.

Saiba mais:

Leia o artigo “Olhando para o Passado, Pensando o Futuro: As Pesquisas Arqueológicas na Ilha do Governador, Rio de Janeiro“, publicado na Revista de Arqueologia, de autoria de Marco André Torres de Souza e Angela Buarque. Acesse.

Conheça mais sobre o que está sendo desenvolvido no Laboratório de Arqueologia Histórica do Museu Nacional/ UFRJ:

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