Carlos Fausto lança o livro ‘Ardis da Arte: Imagem, Agência e Ritual na Amazônia’

Bastões que se tornam espíritos, objetos culturais que falam, humanos que viram jaguares… A partir da percepção que ainda desconhecia, na década de 1990, como se davam as relações com imagens e artefatos rituais na Amazônia indígena, o professor e antropólogo Carlos Fausto decidiu realizar uma ampla investigação etnográfica, comparativa e teórica sobre o assunto. O resultado acaba de ser publicado no livro “Ardis da Arte: Imagem, Agência e Ritual na Amazônia”.

Acompanhe, a seguir, a entrevista que o professor titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ (PPGAS) concedeu ao “Harpia”, onde ele nos conta parte dessa experiência, o que ela traz para sua vida e a essência do que os leitores vão encontrar na publicação.

Professor Carlos Fausto em ritual na Amazônia
Harpia — Professor, para começar, nos conte o que te motivou a escrever esse livro?

Carlos Fausto – Iniciei minhas pesquisas com os povos indígenas da Amazônia em 1988. Quando fiz o doutorado no Museu Nacional, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, estudei um povo chamado Parakanã, que vive entre os rios Xingu e Tocantins, no Pará. Aliás, neste exato momento, seu território está passando por uma ação de desintrusão, sendo uma das áreas mais invadidas da Amazônia e a que tem uma das maiores taxas de desmatamento. Parece que isso vai se resolver agora. Esse é um processo em que me envolvi muito no passado e que hoje acompanho à distância. Quando eu cheguei lá na década de 1980, os Parakanã era um povo de recentíssimo contato. Tinham sido reduzido à administração do Estado havia apenas quatro anos. Na época, eram totalmente monolíngue. Era um grupo quase exclusivamente caçador-coletor. Certo, eles praticavam alguma agricultura, mas muito pouco, porque eram extremamente móveis e, por consequência também, tinham muito poucos artefatos. Praticamente ninguém mais fazia cerâmica, por exemplo, embora tivessem o conhecimento da tecnologia. Ademais, não existe entre eles objetos rituais tais como máscaras. Quase todos os artefatos que faziam eram de existência muito breve. Quando faziam clarinetes para uma festa, eles os confeccionavam uns dois dias antes e, no final da festa, tinham que jogar fora, porque não podiam conservar nada. Era um mundo, pois, quase sem objetos, o que para mim foi uma experiência muito interessante, porque nós somos uma sociedade de incontáveis objetos. Basta olhar agora mesmo à nossa volta. Então, eu tive esse impacto inicial e tomei um pouco dessa experiência como sendo uma espécie de “Amazônia em geral”. Você passa muito tempo no campo, em um lugar, e começa a ver o restante da Amazônia a partir daquele local onde trabalhou.

Ao concluir meu doutorado, em 1997, por uma série de razões, comecei a viajar para o Alto Xingu para trabalhar com um povo chamado Kuikuro, que é um dos povos de língua karib, que compõe o sistema regional do Alto Xingu. Quando cheguei lá, vi um mundo completamente diferente do que eu tinha experienciado entre os Parakanã. Era um mundo em que não tinha um tipo de máscara, mas várias. Não tinha um instrumento de sopro, mas vários, sendo permanentes alguns deles. Foi um choque de cultura e me perguntei: “Que mundo é esse?”.  Antes de tudo, é um mundo que passa constantemente pelo ritual. Percebi que eu não tinha formação para estudar aquilo. E aí eu falei: “Bom, eu preciso estudar!” e o livro é a consequência dessa minha ignorância. Eu não sabia nada e comecei a estudar muito, com a ajuda evidentemente de colegas que já já trabalhavam com esses temas, seja no Brasil, seja no exterior. Eu trabalhei muitos anos em parceria com o professor franco-italiano Carlos Severi e, através dessa relação com ele e os alunos dele, fui me formando nessa área da Antropologia da Arte e da Antropologia do Ritual. Essa relação internacional nos beneficia mutuamente porque a produção brasileira nessa área é tão boa quanto a de outros países.

Então, o livro é uma consequência meio tardia disso tudo, porque eu me envolvi em tanta coisa no meio do caminho, que levei muitos anos para escrevê-lo. Nesse meio tempo, eu me dediquei a formar alguns amigos kuikuro em produção audiovisual, fiz filmes, me envolvi com a política, em projetos comunitários e, assim, o tempo foi passando. O livro “Ardis da Arte” é o resultado de uma experiência humana e etnográfica, que nasce da percepção de que eu ainda desconhecia aquele mundo e que precisava estudá-lo para que ele fizesse sentido para mim.

Harpia — E você foi mais ou menos quantas vezes nessa área?

Carlos Fausto — A primeira vez que eu fui para essa área específica foi em 1998. Fui, mais ou menos, umas vinte vezes ao longo desse tempo. Mas, ao contrário da minha pesquisa de mestrado e doutorado em que eu podia ficar quatro meses no campo, nessa eu me dividia com as atividades de professor do Museu Nacional, tendo que dar aulas e fazer várias outras coisas. Então foram 20 vezes, mas sempre passando entre 20 e 45 dias — não mais do que isso.

Harpia — Professor, e nessas idas a esse mundo tão fascinante e ritualístico, completamente diferente da nossa realidade aqui, o que você traz para a sua vida? 

Carlos Fausto — Como é uma experiência muito visceral, sendo uma experiência de vida e não apenas de trabalho, ela preenche um espaço muito grande na vida da gente, nas emoções, na vida afetiva… Além do mais, eu ajudei a formar muita gente lá, inclusive um grande cineasta hoje reconhecido, tanto aqui quanto no exterior, que é o Takumã Kuikuro. Taku chegou a morar na minha casa durante um ano quando ele fazia o curso na Fundação Darcy Ribeiro. Então, essa experiência também vinha para a cidade e nós estamos em contato o tempo inteiro. Eu vi, inevitavelmente, ao longo desses 25 anos, muita gente nascer e muita gente morrer. Hoje, me dá uma certa melancolia quando eu estou lá porque tem muitas pessoas de quem eu gostava muito e que já não estão mais vivas. Isso não é muito fácil de lidar. Foi difícil quando eu voltei pela primeira vez depois da pandemia, pois passara muito tempo longe de lá. Por outro lado, é uma alegria reencontrar pessoas que eram meninos, ali no começo, e hoje são adultos cheios de filhos maravilhosos e a gente pode ter também tecer novas relações. Vale citar que ninguém morreu de Covid-19, porque, resumidamente, junto com outros pesquisadores — aqui do Museu, eu e a professora Bruna Franchetto — desenvolvemos uma iniciativa importante com a ajuda de financiadores do Brasil e do exterior para protegê-los.

Voltando à sua pergunta: uma coisa que se aprende muito claramente nessa relação com a comunidade indígena é a importância de estar junto e depender um do outro. A gente vive na cidade lutando para ser autônomo, independente, mas na verdade nenhum ser humano é independente. A gente depende das pessoas, seja afetivamente, seja praticamente. Então, vejo muito isso na minha percepção sobre quem eu sou, qual é o meu lugar no mundo, e passou muito na minha relação com meu filho, nas relações com as minhas companheiras ao longo desse tempo e na minha relação com os meus alunos e alunas também. Eu tenho outro modelo de vida na maneira de me relacionar, que é distinta de nossa experiência cotidiana, marcada por uma corrida pela produtividade e a transformação de tudo em números. Mas por mais que resistamos, a verdade é que todo mundo é vítima da ideologia do seu tempo e da sua condição. Eu valorizo essas coisas, mas eu tenho um contraponto contínuo. Vivi um fato curioso, quando eu estava terminando meu doutorado e fui fazer um último campo entre os Parakanã. Em vez de estar vivendo com eles, virei um coletor de dados, tenso, sem nem mesmo jogar futebol no final da tarde. E me disseram “Cara, você está chato: não tem tempo para fazer as coisas!”. Aí eu pensei: “Nossa, eu estou louco. Estou numa aldeia indígena, no meio da Amazônia, leva não sei quantos dias para sair daqui e chegar na minha casa, e estou apressado!”. E o principal motivo para a qualidade de uma pesquisa é ter boas relações com as pessoas e aprender com elas.

Harpia — Muita sabedoria eles terem te passado isso, com essa franqueza para te ajudar… E, professor, nessa relação de 25 anos, frequentando o lugar como antropólogo, jogando futebol, convivendo e tudo mais, como ficava a sua participação nos rituais indígenas?

Carlos Fausto — Eu não sei por que razão, mas eu participei integralmente de todos os rituais a que eu tive a oportunidade de assistir. Na minha segunda viagem, eu estava estudando a língua e com uns cinco meses de campo, eu já entendia alguma coisa e começaram a preparação para um ritual. Eu fui participar da preparação e os cantos são repetidos muitas vezes até que sejam memorizados. Então, eu gravava e ouvia, sendo capaz de cantar na noite seguinte. Eu fazia isso para poder fazer a pesquisa. Mas eles começaram a me dar cantos para eu dançar no ritual. Depois eu escrevi sobre as razões para eles me escolherem para fazer isso. Eu ainda não tinha clareza do que ia acontecer no final das contas, e só sobraram seis pessoas que eram os executores rituais, sendo eu uma delas. A partir desse primeiro movimento, nos anos seguintes, fiquei integralmente dentro desse processo. No caso dos Kuikuro, também comecei a participar e cantar em outras situações. Eu não sou um ótimo cantor e muito menos um bom dançarino, ao contrário! Mas de qualquer modo, pra mim era mais simples do que dançar o tango, então ninguém notava que eu era desajeitado, sendo, claro, mera bondade deles.

Quando eu comecei a trabalhar no Alto Xingu, percebi que seria diferente. Seria uma monstruosidade tentar decorar em uma ordem precisa, 400 cantos diferentes de uma só festa. Eu não sou capaz de fazer isso. Na verdade, é uma coisa para a qual a pessoa precisa ser treinada desde jovem. Então eu participava, como a maioria das pessoas, apenas como dançarino. Bem, mas acabei entrando num ritual muito legal chamado Ritual do Javari, que eu descrevo no capítulo 4 do livro. Esse capítulo 4 é produto de uma percepção muito interna desse ritual, porque participei pessoalmente dele, fazendo as performances vocais em que se fala mal dos primos das outras aldeias. Isso foi em 2004, sendo um daqueles momentos chave em que você passa a ocupar uma outra posição. Como foi filmado na época, até hoje, quando eu chego, encontro os caras de outras aldeias e eles fazem memes, modificam o que eu falei… Enfim, foi uma coisa que eles gostaram muito e eu me diverti muitíssimo também, fiquei super feliz. Mas, por vezes, minha participação no ritual me “atrapalhou”, entre aspas, para fazer a documentação dele, porque estava acontecendo um monte de coisas ao mesmo tempo e eu acabava ficando preso em algum lugar. Por outro lado, tive a experiência de dentro, sabendo de detalhes que talvez não soubesse só observando. Por exemplo, quando uma mulher vem dançar com você, o peso que ela põe no seu braço indica se ela está querendo ou não ter uma relação com você. Então, você aprende detalhes assim mais sensoriais, vivenciais e interessantes, que dão uma espécie de densidade à experiência e ao que a gente escreve.

Fausto com a capa que tem ilustração assinada por Denilson Baniwa, com um pajé-onça criando o mundo
Harpia — Aproveitando que você falou sobre essa passagem que está no Capítulo 4. O que mais os leitores vão encontrar nesse livro?

Carlos Fausto — O livro tem cinco capítulos, além da introdução e a conclusão. Para cada capítulo, escolhi um tipo de artefato para discutir. Minha única condição para essa escolha era que eu tinha que ter materiais etnográficos próprios sobre esses artefatos. Embora o livro seja super comparativo, eu sempre começo por meus dados. Então, o primeiro capítulo é sobre o corpo: o corpo vivo, dançando e participando de rituais, e o corpo morto: troféus de guerra, crânios, partes de pessoas… O segundo capítulo é sobre instrumentos de sopro, em particular as chamadas flautas sagradas, que as mulheres não podem ver, e que ocorrem em um imenso complexo que atravessa a Amazônia inteira e o ponto extremo é o Xingu.

No terceiro capítulo, chamado “Redemoinhos de Imagens”, eu trabalho com máscaras, onde a comparação é um pouco maior, porque começo no Alasca e venho descendo até a Amazônia. E, no quarto e no quinto capítulos, eu pego duas efígies humanas, que são muito raras em rituais amazônicos, mas que existem no Alto Xingu. Uma é a efígie do Javari, que é uma efígie rústica, que é atacada e vilipendiada como um primo cruzado. E a outra é efígie do ritual Quarup, que é hiper decorada e deve ser respeitada porque presentifica o chefe morto. E eu amarro tudo isso com uma introdução e uma conclusão. A introdução é uma apresentação, digamos, dos problemas teóricos que ajudam a ler esse conjunto de análises. E a conclusão contém uma comparação mais ampla com o regime de imagens ocidental, especialmente cristão, em relação ao regime de imagens dos povos indígenas das Américas.

Então, o livro tem uma camada de dados etnográficos, depois uma camada comparativa entre os povos indígenas e depois uma grande comparação entre “nós” e “eles”. Esta última depende de uma simplificação tanto do “nós”, quanto do eles. Às vezes, as simplificações ajudam-nos a ver a originalidade do outro lado. Então, eu tenho que construir um certo regime de imagens, ao qual nós estamos acostumados, tomando como natural e pegar ele para mostrar que não é assim tão óbvio. Há uma originalidade muito grande tanto no caso ameríndio como no caso cristão.

Harpia — Você falou em primos. Primos seriam os povos vizinhos? 

Carlos Fausto — Não necessariamente, mas, nesse caso, sim. O sistema do Alto Xingu é multiétnico e plurilíngue. Ao longo da história, foi se formando um sistema no qual os povos de outras línguas e de outras origens foram entrando nesse sistema. Hoje você tem as principais famílias linguísticas — de línguas indígenas, evidentemente — representadas nesse conjunto com uma cultura comum. Há uma série de rituais que são intertribais, compartilhando esse universo mítico e cultural. O Quarup é o evento em que todos os povos são convidados. Não é só porque os Villas-Boas gostavam do Quarup, mas ele é de fato o momento máximo de reunião desse sistema. Já, por exemplo, no Javari, você vai convidar um ou dois povos diferentes, sem a totalidade dos povos.

Harpia — Professor, gostaria que você explicasse o título “Ardis da Arte”. Fiquei curiosa para entender e acredito que seja interessante explicar brevemente para os leitores. O que ele significa? 

Carlos Fausto — O título “Ardis da Arte” é um pouco inspirado na ideia do engano, do ardil, da artimanha. No final, eu vou mostrar que, ao contrário da nossa arte na qual a verossimilhança é central, nesse mundo o engano está permitido. Nele, as figuras dos heróis culturais são, em geral, o que a gente chama em inglês de “tricksters”, de enganadores. O engano seria algo produtivo e que a arte é ela, em si mesma, um dos mecanismos desse engano. Aqui há também a ideia de que a arte é uma forma de armadilha, uma forma de captura. Isso foi desenvolvido, em grande parte, por dois autores. Um deles o meu amigo e colega Carlos Severi, com a ideia de captura da imaginação; o outro um pesquisador britânico, já falecido, chamado Alfred Gell, que escreveu um livro publicado postumamente intitulado “Arte e Agência”, no qual ele trata do conceito de abdução de agência nas artes extra-ocidentais.

Harpia — Interessante… E, para concluir, tem mais algum detalhe do livro que você gostaria de destacar?

Carlos Fausto — Fiquei muito feliz que um amigo, que é um artista indígena contemporâneo, Denilson Baniwa, tenha feito a capa do livro. Essa capa tem muito a ver com o argumento do livro. O Denilson é um gênio, tanto do ponto de vista intelectual quanto artístico. Você explica sua ideia uma só vez e Denilson já processa e transforma a ideia em imagem muito rapidamente. Eu pedi que ele elaborasse a imagem do pajé-onça criando o mundo. De primeira, ele veio com esse desenho e eu logo disse: “Fechou!”.

 

Saiba mais:

Livro “Ardis da Arte: Imagem, Agência e Ritual na Amazônia”, publicado pela Edusp – Editora da Universidade de São Paulo. Acesse para comprá-lo.

Exposição “Princeton Terra Indígena: An Art Exhibition in Progress by Denilson Baniwa”. Conheça. [inserir hiperlink:

Professor Carlos Fausto e suas linhas de pesquisa.

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