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Estranhamentos sobre a ‘Lei das Águas’ são pontos de partida de pesquisa

“O Apagamento dos Conflitos pelo Uso da Água Associados a Grandes Projetos na Avaliação dos Vinte Anos da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH)”. Este é o título de um estudo preliminar, apresentado e discutido recentemente na Reunião Brasileira de Antropologia. Autora do paper, a pós-doutoranda Natália Gaspar compartilha, nesta matéria, alguns pontos com o nosso corpo social.

Créditos: Diogo Vasconcellos (Museu Nacional/UFRJ)
Panorama geral

A Natália está realizando atividades de pós-doutorado no Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), localizado no Setor de Etnologia e Etnografia do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ. Ela sempre trabalhou na área ambiental e, no pós-doutorado, está pesquisando sobre políticas governamentais relacionadas à água no Brasil. Começou a conhecer de perto essa temática quando trabalhou como pesquisadora do IBASE, estudando o direito à água em municípios impactados pela cadeia produtiva do petróleo no estado do Rio de Janeiro e, em seguida, como bolsista do IPEA, em 2017, fazendo uma avaliação dos 20 anos da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), também conhecida por “Lei das Águas”.

“No LACED, temos um conjunto de estudos sobre dispositivos do Estado e sua interação com grupos sociais como povos indígenas e populações tradicionais. Nesse contexto, inserem-se as pesquisas sobre grandes projetos de desenvolvimento, a maior parte deles causadores de danos aos recursos hídricos e às populações que deles dependem. Cabe ressaltar que o Brasil se insere no capitalismo mundial pela produção de commodities, e isso traz uma série de danos ambientais, onde podemos destacar os recursos hídricos, seja pela diminuição da água nas localidades onde são instalados e operam esses projetos, seja pela poluição, pelos diversos usos e consequentes impactos à saúde. Na antropologia, temos a prática do estranhamento, e estranhei, nas políticas governamentais, a ausência de atenção às populações tradicionais, incluindo os povos indígenas, as comunidades quilombolas, caiçaras, pescadores artesanais, ribeirinhos, camponeses, entre outros, que são impactados diretamente”, descreve Natália.

Outro estranhamento provocado na pesquisadora é referente à grande influência de instituições multilaterais nas políticas governamentais brasileiras relacionadas à água. Tanto o Banco Mundial como a OECD (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômicos) são instituições que estão nos próprios documentos institucionais, tendo grande relação com a criação, por exemplo, da Agência Nacional de Águas (ANA), e da própria criação da Política Nacional dos Recursos Hídricos. “Foi a partir desses e de outros estranhamentos que eu resolvi dedicar meus estudos a essas questões relacionadas à água”, explica Natália Gaspar.

Foco do pós-doutorado

Resumidamente, a pesquisadora está partindo da chamada “Lei das Águas”, que é nacional, e olhando as percepções em cada local, vendo as especificidades. No paper apresentado, resumidamente, ela destaca que existe uma expressiva influência dos representantes do Banco Mundial, o Bird – Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento – na definição de questões tratadas como problemáticas nessa avaliação dos vinte anos dessa política governamental. Isso envolve a escolha das bacias ou regiões hidrográficas alvo de estudos de caso, a definição da metodologia de pesquisa a ser utilizada e a elaboração de recomendações para aprimoramento da PNRH e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, entre outros aspectos. Neste momento, esses estudos da Natália estão sendo aprimorados para a publicação de artigos científicos.

“Todas essas discussões se dão no contexto de mudanças climáticas, que é importante nessa discussão, e ainda vou me aprofundar. Cada vez mais serão necessários especialistas para apresentar soluções para o armazenamento do grande volume de água pontualmente das chuvas fortes e contornar sua escassez. Da mesma forma, vou aprofundar os estudos sobre a percepção do valor da água, entre outros aspectos”, informa Natália.

Créditos: Diogo Vasconcellos (Museu Nacional/UFRJ)
E os grandes crimes ambientais?

O emblemático desastre ambiental na Bacia do Rio Doce, com o rompimento da barragem da Samarco, joint venture da Vale e da mineradora australiana BHP Billiton, impactou a bacia hidrográfica inteira em novembro de 2015. “Um povoado ficou destruído, com os rejeitos de minério se alastrando até a foz. Na época, a cidade de Governador Valadares, que fica bem distante, ficou uma semana sem nenhuma gota d’água. E não foi um racionamento, simplesmente não tinha água potável. Esse caso, por exemplo, não foi tratado na recente avaliação sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos. Isso seria importante porque permitiria tratar desses grandes crimes ambientais. Então, nos cabe perguntar: Para onde está indo o olhar desses grandes atores e instituições que estão comandando a Política e a implementando?”, questiona a pós-graduanda Natália Gaspar.

Percepções sobre a água: mercadoria versus bem comum

Nas políticas governamentais, a água é tratada como um recurso considerado cada vez mais escasso e também estratégico. Entre os instrumentos da PNRH, está prevista a cobrança pelo uso desses recursos hídricos, atribuindo um valor à água. “Cabe lembrar que a água, em 2020, passou a ser negociada na Bolsa de Valores de Nova Iorque à semelhança das commodities. E as percepções das populações situadas onde estão sendo implementados esses grandes projetos de produção de commodities são muito diversas. Podemos generalizar, mesmo perdendo algumas nuances, que a água não é percebida assim como uma mercadoria ou recurso por eles, sendo tratada como um bem comum. Então, existe uma diferença de percepção e abordagem, que é o mais gritante”, avalia a pesquisadora.

Essas populações são afetadas de duas maneiras principais, segundo destaca Natália Gaspar: “Como a água não tem fronteira, todo o curso do rio até o mar é afetado, então elas são diretamente impactadas localmente. Em segundo lugar, porque são populações que dependem mais dos bens naturais para seu modo de vida, para perpetuar suas práticas, muitas vezes ancestrais. Mesmo assim, não se tem uma atenção especial a essas populações nas políticas públicas de uma maneira geral”.

 

Saiba mais:

Leia o paper apresentado na 33ª Reunião Brasileira de Antropologia, em agosto de 2022: “O Apagamento dos Conflitos pelo Uso da Água Associados a Grandes Projetos na Avaliação dos Vinte Anos da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH)”. Acesse.

 

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