Afinal, o que chega primeiro na vida de um ilustrador científico: a arte ou a ciência? Essa e outras vivências estão contadas aqui por dois especialistas que fazem parte da história do Museu Nacional/UFRJ: o Luiz Antônio Costa, que entrou na década de 1970 e atualmente está aposentado, e a professora do Departamento de Botânica, Luciana Witovisk, que em breve dará cursos sobre o tema.
‘O desenho é a energia mais forte em mim, e foi por meio dele que segui na direção da pesquisa científica para ajudar a desvendar os mistérios da natureza’, Luiz Antônio Costa
Quando era criança, o Luiz Antônio Costa ficava encantado com a beleza do percevejo que via no pé de maracujá no jardim de sua casa, o Diactor bilineatus. Na mesma época, ele desenhava histórias em quadrinhos, e as enviava para seu programa infantil predileto na TV, o “Capitão Furacão”, ganhando brinquedos como prêmio. E sua história com a gente começou em 1972, quando ele tinha 17 anos e seu tio João Guimarães Lobo, que era chefe do setor de Fotografia do Museu Nacional/UFRJ, trouxe uma ilustração reproduzindo cenas do Egito para vender na lojinha do Museu, e ela foi comprada rapidamente e elogiada por uma pesquisadora dos EUA. Percebendo o potencial, o tio indicou que viesse aprender ilustração científica no dia a dia do laboratório do professor José Cândido de Mello Carvalho, com o rigor científico, toda a metodologia e precisão necessária em cada mínimo detalhe para descrever as espécies nos trabalhos científicos.
“Já no primeiro contato que tive com o professor José Cândido, ele exigiu que eu estudasse a anatomia dos insetos em latim. Ele era o zoólogo no mundo com o maior número de publicações e descrições de espécies de Miridae, sendo muito exigente. Trouxe novidades do exterior, como a técnica de dissecção do aparelho genital de insetos para corroborar na identificação das espécies, e eu aproveitei a oportunidade desse aprendizado, ’pegando carona na cauda do cometa’, digamos assim”, orgulha-se Luiz Antônio, que é formado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, Publicidade e Propaganda, e depois de longo período de aprendizado na pesquisa dos mirideos, passou, em 1988, a assinar os trabalhos científicos como co-autor. Para se ter uma ideia, a importante e histórica publicação “Arquivos do Museu Nacional”, em 1997, teve em seu volume 57 exclusivamente o trabalho “Chave de Identificação de Miridae do Mundo”, de autoria do professor José Cândido e de Luiz Antônio Costa, contendo 391 ilustrações científicas.
Luiz destaca que o setor de Hemiptera, do Departamento de Entomologia, contava com diferentes especialistas em ilustração científica e que aprendeu na prática, especialmente com o artista plástico e professor de Filosofia e de Desenho da PUC-Rio, Paulo Wallerstein Pacca. Além disso, teve contato com inúmeros especialistas em ilustração científica por conta do grande intercâmbio científico do Museu com a Fiocruz, a Embrapa, as diferentes universidades e instituições científicas do Brasil e do exterior, incluindo o Museu Nacional de História Natural de Washington, nos EUA, e o Museu de História Natural de Paris, na França.
Perguntado se o traço de cada desenhista poderia interferir em como é exatamente o animal, Luiz explicou que, para evitar a falta de precisão no desenho, existe um aparato microscópico chamado de câmera clara, que através de um prisma faz refletir a imagem do objeto estudado no papel, mantendo todas as proporções exatas, suas cavidades, se tem pelo ou não, evitando cair em erro na caracterização da espécie. Entre seus trabalhos mais desafiadores está a representação de um fóssil de peixe, que a professora da UERJ, Valéria Gallo, trouxe para ser desenhado para a sua tese de doutorado. Somente tinha para ele, um fragmento de rocha de difícil observação dos seus detalhes e ranhuras impressos, mas, orientado pela especialista, foi desenhado um gênero novo para a ciência.
Já entre os resultados de ilustração científica que o Luiz sente maior orgulho na carreira está a espécie que ele considera mais bonita pelo seu formato e coloração: a Teleonemia morio: “Os detalhes das asas me lembram a beleza da renda renascença feita pelas rendeiras do nordeste brasileiro.”
“A ilustração é a alma do trabalho científico, porque se você for descrever o objeto que está sendo estudado somente por meio de palavras, muitas palavras escritas serão necessárias e ele nunca será entendido tão bem e rapidamente como tendo o auxílio da imagem com todos os seus detalhes de cor, estrutura dimensional, precisão de formato, sendo corroboradora do texto, já que um complementa o outro”, avalia Luiz. Ele chama a atenção para o fato da arte rupestre, encontrada nas cavernas pré-históricas, ser a primeira manifestação do homem na arte de representar a natureza.
Ao longo de sua carreira trabalhando com ilustração científica no Museu Nacional/UFRJ, Luiz participou de diversas colaborações e intercâmbios. Ele ressalta que, em 2003, recebeu do governo da França uma bolsa de pesquisa para estudar e organizar a Coleção de Miridae do Museu de História Natural de Paris. Esse estudo resultou na revisão do gênero Anomalocornis com a descrição de uma espécie nova, publicado no Annaes da Sociedade de Entomologia da França. Teve também a oportunidade de visitar e consultar as coleções do American Museum of Natural History, em Nova Iorque, em 2013, e do Museo Nacional de História Natural de Cuba, em 2015. Participou da descrição de 275 espécies novas de Heteroptera, tendo seis espécies de Hemiptera nomeadas em sua homenagem. E finaliza: “O desenho é a energia mais forte em mim, e foi por meio dele que segui na direção da pesquisa científica para ajudar a desvendar os mistérios da natureza. Gosto muito da frase de Confúcio ‘Uma imagem vale mais que mil palavras’”.
‘Nossas observações se tornam muito mais detalhadas e isso nos ajuda a dar um salto em aprendizado em todas as áreas’, professora Luciana Witovisk
Apesar de sempre gostar de desenhar, a professora Luciana Witovisk nunca foi de exercitar, nem nunca teve cadernos de desenho. Mas, quando ingressou na faculdade de Biologia na UFPR, a ilustração entrou em sua vida, em 1999. Durante o estágio de graduação na Botânica, seu orientador pediu que tentasse desenhar em escala e a lápis um galho do gênero Pseudobombax. Em duas horas ela entregou o trabalho feito. Ele ficou surpreso e disse para procurar o Centro de Ilustração Botânica do Paraná, porque percebeu que levava jeito. “Eu me apaixonei quando descobri que eles eram conveniados à Fundação Margaret Mee, além do curso completo durar um ano e ter mensalidades acessíveis. O que me motivou também foi a oportunidade, não costumo deixá-las passar, pois nada na vida me dá mais prazer do que aprender e sempre sonhei em ter uma formação ampla, como uma naturalista de antigamente”, destaca Luciana, que chegou ao Museu Nacional/UFRJ em 2008 para o doutorado e ingressou como professora em 2015.
A professora conta que sente orgulho de todos trabalhos como se fossem filhos. “Eles são diferentes, cada um trazendo um desafio, às vezes cansam, mas são sempre uma alegria. Já ilustrei plantas, ossos, insetos, artefatos em cerâmica, etc. Mas, de todos, o que mais gosto é um exercício para auxiliar no ensino de anatomia da madeira e foi desafiador criar o cubo para montagem. Foram estudadas diversas lâminas em microscópio e criado o desenho ideal, não é uma cópia pura e simples” (Veja esse trabalho aqui).
Sobre o maior desafio que já se deparou, ela conta que, até o momento, foi uma encomenda de uma planta que o pesquisador só tinha conseguido uma folha e as muitas flores de 1mm estavam em um fixador há muito tempo: “Foi uma reconstrução bastante difícil. Mas o maior desafio nunca foram os materiais, porque esses com tempo e observação a gente aprende e vence; o pior são as pessoas, que sempre querem o melhor trabalho possível no menor tempo e custo. O que as pessoas que precisam do trabalho de um ilustrador precisam colocar na balança é: não é um trabalho puramente técnico. Não somos impressoras de ilustrações. A composição requer uma técnica apurada, mas o processo também é criativo e isso passa pelo nosso lado emocional; então, tratem bem quem vai ilustrar para vocês, não tentem baixar o preço ou incluir mais ilustrações no ‘combo’”.
A professora Luciana avalia que, em se tratando de seres vivos, somente a ilustração é capaz de reunir em uma única imagem todas as características importantes que definem uma espécie, sendo uma composição do ideal. “A fotografia pode ser clara, mas às vezes, o que o pesquisador quer mostrar precisa ser didático e a ilustração cai melhor”. Ela informa que são muitas as aplicações da ilustração científica, e que as novas tecnologias auxiliam os ilustradores, mas não oferecem risco a esse trabalho. “Um campo que tem se expandido bastante nos últimos anos é a ilustração científica realista feita à mão, sendo um outro estilo para artes coloridas, diferente do que existia, e esse estilo nasceu junto com o desenvolvimento das artes gráficas digitais. Na verdade, hoje, os ilustradores têm mais ferramentas à sua escolha, para muito além dos lápis e pincéis”.
Como mensagem aos estudantes do Museu Nacional/UFRJ, Luciana diz: “A ilustração científica é uma arte difícil, mas muito recompensadora. Além dos benefícios imediatos de ilustrarmos o que precisamos, o exercício da ilustração nos torna pessoas com melhor sentido espacial, coordenação motora fina impecável, as nossas observações se tornam muito mais detalhadas e isso nos ajuda a dar um salto em aprendizado em todas as áreas. Além de exercitarmos muito a imaginação e a disciplina, características imprescindíveis para quem quer trabalhar com ciência, porque são elas que diferem os cientistas dos burocratas da ciência. De bônus, o exercício da ilustração é uma atividade relaxante”.
Ficou interessado em se especializar também?
A professora Luciana Witovisk ministra a disciplina de pós-graduação “Introdução à Ilustração Científica” no Programa de Pós-Graduação em Geociências Patrimônio Geopaleontológico (PPGeo). Ela ensina desde o desenho em grafite de diversos materiais,a arte em nanquim, e também como fazer desenho vetorial e montar pranchas para trabalhos acadêmicos. Já no Programa de Pós-Graduação em Zoologia (PPGZoo), ela cadastrou a disciplina de pós-graduação “Introdução à Ilustração Zoológica”, e pretende oferecer “Introdução à Ilustração Botânica” no Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas (Botânica) (PPGBot). “Essas duas disciplinas serão focadas nas necessidades dos alunos. Além de trabalhar os conteúdos da disciplina do PPGeo, ainda será abordada a ilustração sob lupa e microscópio”.
Inspire-se!
Livro “Ilustração Botânica – Princípios e Métodos”, de Diana Carneiro, Editora UFPR, indicado pela professora Luciana.