Na Tumba Tebana 49, na cidade de Luxor, no Egito, a disposição das estátuas do sacerdote chefe dos escribas de Amon, Neferhotep, e de sua esposa Merytra pode não ser casual. As análises de campo sugerem que durante os equinócios da primavera e do outono, um alinhamento solar ilumina somente a estátua de Merytra, indicando uma escolha intencional. Essa importante descoberta é um dos resultados dos estudos de Arqueoastronomia realizados por Davi Duarte sobre o Egito Antigo.
Ele é pesquisador do Laboratório de Egiptologia (Seshat) do Museu Nacional/UFRJ, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (PPGArq) e integrante do Projeto Neferhotep, dirigido pela egiptóloga Maria Violeta Pereyra, da Argentina. Seus orientadores são a professora Marta Mega do IFCS/UFRJ e o professor Álvaro Allegrette da PUC/SP. Na entrevista, a seguir, concedida ao boletim Harpia, ele nos conta mais sobre seus estudos.
Harpia — Para começar, informe, basicamente, o que se estuda em Arqueoastronomia?
Davi Duarte — A Arqueoastronomia estuda a relação das arquiteturas erguidas pelos humanos com eventos celestes, sendo até hoje importantes marcadores de tempo e das estações. Devemos entender que o domínio do tempo ainda é uma ferramenta de poder político. Se observarmos com atenção, contabilizar um calendário, as datações cerimoniais e festivas são prerrogativas dos governos. Na Antiguidade, isso também era assim. O saber astronômico para o homem antigo era essencial para sua sobrevivência e, por conseguinte, uma peça nas estruturas de ordenamento e domínio social. É por meio da observação de equinócios, solstícios e helíacos que era possível, como até hoje, registrar a mudança de estações do ano. Saber quando uma colheita deveria ser feita com alguma eficiência, quando seria propício e seguro navegar sob bons ventos e uma boa visibilidade das estrelas orientacionais, entre outros benefícios era essencial. Assim, o instrumento mais utilizado pelos antigos como seus “marcadores de tempo” estava na arquitetura de suas construções como palácios, pirâmides, tumbas, santuários etc.
Harpia — Interessante… E o que você tem estudado no Egito?
Davi Duarte — Minhas pesquisas no Egito são medições de alinhamentos astronômicos e arquitetônicos da Tumba de Neferhotep (TT49), no Vale dos Nobres da necrópole tebana localizada em Luxor. Construída no período transicional das dinastias XVIIIª e XIXª. Essa tumba apresenta alinhamentos importantes que demonstram que o domínio do saber astronômico, neste período conturbado da história egípcia, não estaria restrito à realeza, mas, apresenta-se representado nas tumbas de uma classe elítica da sociedade desse período.
Harpia — Qual é o seu foco nas pesquisas?
Davi Duarte — O foco da minha pesquisa está em detectar os alinhamentos por meio de uma metodologia de medição com o auxílio softwares de análises astronômicas e imagens de satélite aliados a um equipamento desenvolvido por mim especificamente para a coleta de dados local. No momento, minha pesquisa no Egito está focada na TT49, entretanto, para se cumprir com a metodologia e sua eficácia, são necessárias medições em outras tumbas da necrópole do mesmo período da TT49 e templos, como Karnak e Hatshepsut. Agora em 2024, foi a terceira campanha em que eu participei desde 2020.
Harpia — O que você descobriu até o momento e que sente mais orgulho?
Davi Duarte — Além de outras importantes descobertas, posso seguramente dizer que a mais marcante na Tumba de Neferhotep está na posição das estátuas mortuárias. Diferentemente das demais tumbas de seu tempo, a posição das estátuas está invertida o que permite que a luz solar, no momento do equinócio, atinja a estátua de Merytra, esposa de Neferhotep, mas não a estátua dele. É algo notável onde podemos sugerir um status de importância à sua esposa cuja estátua está alinhada a um evento celeste marcador de tempo. Ao colocar o equipamento para aferição das estátuas, percebe-se também que a estátua de Merytra tem uma assimetria entre o quadril e o rosto, ao que tudo corrobora, é intencional a fim de uma correção de ângulo.
Harpia — Maravilhosa essa descoberta. E desde quando você está desenvolvendo esses estudos no Museu Nacional/UFRJ?
Davi Duarte — Inicialmente, o desenvolvimento da minha pesquisa de doutoramento em arqueoastronomia tem como foco os palácios em Creta, na Grécia. Minha ida ao Egito se fez por convite da professora Violeta Pereyra, a fim de utilizar minha metodologia também na Tumba de Neferhotep. Hoje, integro efetivamente a equipe do Proyecto Neferhotep da Universidade de Buenos Aires. Assim, eu participo de duas áreas na arqueologia do Museu Nacional: Egiptologia e Arqueologia do Mediterrâneo.
Harpia — O que você recomendaria para os leitores do boletim ‘Harpia’ conhecerem mais sobre a Arqueoastronomia?
Davi Duarte — Recomendo, para o dileto iniciante, uma bússola sempre à mão para aferir as arquiteturas monumentais, igrejas antigas, mausoléus, linhas de organização de uma cidade, por exemplo. Entretanto, um aprofundamento na pesquisa sobre a cultura que cerca o objeto de estudo também é essencial para compreendê-lo. Seja num sítio arqueológico — ou mesmo histórico — o uso de um efeito orientacional pelo Homem em relação às suas construções é, por vezes, perceptível e fascinante. Podemos experimentar um olhar astronômico em sítios megalíticos e com inscrições rupestres localizados em diversos lugares no Brasil. O olhar mais atento ao céu e seus eventos pode trazer curiosas descobertas.
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