
Um importante projeto relacionado à escravidão africana no Brasil está em andamento no município de São Francisco de Itabapoana, com foco na proteção do patrimônio arqueológico e no avanço do conhecimento histórico sobre esse período no norte fluminense. Trata-se do Cemitério da Praia de Manguinhos, localizado entre a faixa de maré e a área da Fazenda Salinas, o qual vem sendo ameaçado há décadas pela erosão costeira e pelas ressacas.
“Como resultado, os remanescentes humanos ficam expostos, o que gera situações eticamente inaceitáveis, bem como comprometem a sua integridade”, avalia Andrea de Lessa Pinto, professora do Museu Nacional/UFRJ e coordenadora da pesquisa, que é autorizada e financiada pelo Iphan e conta com o apoio logístico da prefeitura local. A equipe é formada por estudantes e ex-estudantes do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu, o PPGArq.
As escavações têm como propósito resgatar os remanescentes humanos, conter a destruição em curso e ampliar o conhecimento sobre práticas funerárias, saúde, dieta e modos de vida de africanos escravizados e seus descendentes entre os séculos XVIII e XIX. “É um trabalho essencial, de profundo respeito à memória dessas pessoas”, ressalta a arqueóloga Andrea Lessa.
A comunidade quilombola da Barrinha, localizada a cerca de 2 km do sítio arqueológico, sempre preservou a memória oral sobre os enterramentos no local. Moradores relatam, há gerações, o aparecimento de ossos após ressacas e histórias de “aparições”, associando o espaço à ancestralidade africana que deu origem ao quilombo. Há décadas eles reivindicam providências das autoridades diante da exposição recorrente de restos humanos e pedem reconhecimento para a área como lugar de memória.
Em 2020, uma forte ressaca trouxe novamente os ossos à superfície. A professora Andrea Lessa explica que, na ocasião, foi contactada pelas irmãs do Instituto Assistencial São José, proprietário de um sítio localizado quase em frente ao Cemitério da Praia de Manguinhos. “Sensibilizadas com a situação, as irmãs vêm contribuindo enormemente. Elas tiveram um papel fundamental para viabilizar a realização do projeto arqueológico, no qual eu e minha equipe ficamos hospedados inúmeras vezes no seu sítio, e elas também autorizaram a construção do barracão técnico no terreno. Sem esse apoio, a realização seria muito mais difícil”, explica a professora Andrea Lessa.
Pesquisa emergencial de preservação e memória

O projeto de escavação, autorizado pelo Iphan em 2023 e ainda em curso, prevê a delimitação do sítio arqueológico e o resgate emergencial dos remanescentes humanos impactados pela ação do mar, e pelo uso do solo como pastagem. As escavações abrangem tanto a linha de maré quanto a área da Fazenda Salinas, historicamente associada ao ciclo canavieiro e ao tráfico de africanos. A primeira etapa de campo, realizada no final de 2024, foi registrada com fotos, desenhos e coordenadas. Atualmente as atividades de curadoria estão em fase final, o que envolve a higienização, identificação, inventário e acondicionamento técnico do material escavado.
Resultados até o momento
Durante esta etapa, foram recuperados 21 indivíduos em estruturas funerárias primárias, algumas íntegras e outras parcialmente perturbadas. Considerando coletas emergenciais anteriores, o número mínimo de indivíduos chega a cerca de 45, embora muitos estejam fragmentados, com mais de 20 crânios isolados e caixas de ossos desarticulados.
A professora Andrea Lessa explica que as estruturas funerárias revelam enterramentos majoritariamente em posição cristã, com mãos cruzadas sobre o peito ou pelve. “Embora a ausência de lápides ou outras formas de marcação indique a precariedade dos sepultamentos, a deposição dos corpos revela o mínimo de cuidado com os mortos, em contraste com o contexto funerário do Cemitério dos Pretos Novos, caracterizado por grande violência”, avalia a arqueóloga Andrea.
Além das atividades de curadoria, estão em curso as análises bioarqueológicas, e a realização de datações radiocarbônicas por AMS em colágeno humano e de análises isotópicas de carbono e nitrogênio para discutir padrões alimentares. “A partir dessas pesquisas, em associação com os dados de arqueologia funerária, será possível discutir o modo de vida das pessoas enterradas no Cemitério de Manguinhos, bem como inferir a sua origem: se eram africanos recém-chegados, afrodescendentes nascidos no Brasil ou ainda outros grupos sociais associados à produção canavieira”, explica a professora Andrea Lessa.
Preservação e guarda do acervo
Todo o material proveniente no sítio arqueológico está sendo tratado no Espaço Dedicado de Arqueologia do Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos/IPN, e posteriormente retornará a São Francisco de Itabapoana, para guarda sob responsabilidade da Secretaria Municipal de Educação e Cultura, atendendo ao desejo da comunidade local, em especial da comunidade quilombola da Barrinha.
Cabe citar que o Cemitério da Praia de Manguinhos foi identificado na década de 1980, quando professores da então Faculdades Integradas Estácio de Sá, coordenados por Alfredo Mendonça de Souza, realizaram escavações a partir de relatos de moradores. O material coletado deu origem a um artigo publicado em 1994, de autoria de Sheila Mendonça de Souza, primeira referência científica ao sítio. Quatro décadas depois, a urgência da preservação mobiliza novas pesquisas, agora com respaldo institucional e articulação comunitária.
Saiba mais:
Conheça a seguir outros projetos arqueológicos liderados pela professora Andrea de Lessa Pinto, que estão publicadas no Harpia.
- Estudo revela ocupação humana litorânea mais antiga do Brasil
- Bakhita e outros africanos ganham espaço guardião de memórias sensíveis e de valor universal
- Cemitério dos Pretos Novos: nova fase de escavações está sendo iniciada
Conteúdo do Harpia Nº 34, outubro de 2025.




