Quem visita o Museu Memorial Pretos Novos se depara com uma ampla fotografia de Bakhita. A imagem impactante é testemunha de um dos capítulos mais dolorosos da história. Trata-se do primeiro esqueleto articulado encontrado nas escavações arqueológicas do antigo cemitério do Valongo, redescoberto em 1996, que integrou o maior mercado de venda de seres humanos escravizados das Américas. Agora, logo ao lado dessa sala expositiva, Bakhita, outros remanescentes humanos e artefatos estarão preservados no Espaço Dedicado de Arqueologia.
“Este espaço não deve ser entendido apenas como um repositório de acervos de interesse acadêmico, porque é, na verdade, um guardião de memórias sensíveis e de valor universal, essenciais para a compreensão da tragédia social representada pela escravidão africana e de seu legado na atualidade”, pontua a responsável pelo espaço de arqueologia e curadora das coleções, a professora do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional/UFRJ, Andrea de Lessa Pinto. Essas pesquisas arqueológicas, ao longo desses anos, trazem luz a diferentes aspectos dessa história, consolidando esse espaço funerário como lugar de profundo significado identitário, territorial e simbólico. O Museu Nacional/UFRJ contribui com essa iniciativa por meio de Acordo de Cooperação Acadêmica e Técnico-Científica com o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos. O Espaço Dedicado de Arqueologia, que conta com espaço de guarda e laboratório, foi viabilizado por meio de duas emendas parlamentares e sua implementação foi aprovada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Iphan).
“É importante destacar que se trata de um contexto extremamente sensível: tanto o sítio, pela sua relevância histórica e social, quanto os remanescentes humanos de pessoas escravizadas, que passaram por um sofrimento profundo. Embora seja um material arqueológico, não podemos tratá-lo apenas como um objeto científico. É um material diferenciado, que requer um olhar mais humanizado, sendo essencial manter todos os remanescentes reunidos e junto ao solo hoje considerado sagrado por afrodescendentes e praticantes de religiões de matriz africana”, avalia a professora Andrea.
Emendas viabilizam nova fase
Conheça, a seguir, as emendas parlamentares que viabilizaram a criação do Espaço Dedicado de Arqueologia no Museu Memorial Pretos Novos:
Projeto “Arqueologia, Identidade e Memória da Diáspora Africana no Rio de Janeiro: os Pretos Novos Contam a sua História” (2021). Resumidamente, a emenda da deputada federal Jandira Feghali foi destinada à realização de novas escavações arqueológicas e à implementação do Espaço Dedicado de Arqueologia do Instituto dos Pretos Novos, composto por reserva técnica e laboratório.
Sub-projeto “Preservação da Materialidade e Divulgação da Memória dos Pretos Novos do Valongo: Curadoria, Pesquisa e Salvaguarda dos Acervos Arqueológicos” (2023). A emenda do deputado David Miranda, recentemente falecido, financia as atividades curatoriais de todo o material arqueológico descoberto que se encontra no IPN. Isso envolve os procedimentos de inventariamento, preservação, e estudo dos remanescentes humanos e artefatos históricos encontrados no local.
Sensibilidade do sítio e do material
A professora Andrea Lessa explica ainda que o local é considerado sagrado pelos afrodescendentes uma vez que preserva tanto a herança genética quanto a memória da cultura africana. Os remanescentes encontrados no cemitério, simbolizados pela africana Bakhita, possibilitam um melhor conhecimento sobre os horrores do cativeiro, mas também sobre a vida no continente africano.
Bakhita, carinhosamente apelidada em homenagem à primeira santa negra, Josephine Bakhita, foi depositada no solo acompanhada de outros três cativos, sem qualquer cuidado, demonstrando de forma clara as práticas funerárias indignas realizadas no cemitério. Os remanescentes permaneceram em exposição no local, cobertos por um tampo de vidro, mas foram recentemente retirados por conta de problemas de preservação resultantes da alta umidade do solo e da trepidação causada pela passagem do VLT na rua em frente. Assim, a professora Andrea Lessa avaliou que seria melhor retirar os remanescentes e deixá-los guardados no novo Espaço Dedicado de Arqueologia.
É importante lembrar que esse é o único cemitério nas Américas dedicado exclusivamente a escravizados recém-chegados da África, evidenciando a brutalidade do comércio de seres humanos na região do Valongo, onde funcionou um dos maiores mercados de escravizados africanos.
Você já visitou o Museu Memorial Pretos Novos?
O Museu Memorial Pretos Novos é um espaço singular e emblemático no que se refere ao estudo e divulgação da história da escravidão africana. Está situado sobre o solo do antigo Cemitério dos Pretos Novos do Valongo. Além do resgate e dignificação da memória ancestral, o Museu Memorial Pretos Novos promove regularmente eventos voltados para a educação patrimonial por meio de oficinas temáticas nas áreas de história, sociologia, antropologia, arqueologia e religiosidade, e também pelas visitas mediadas pelo território conhecido como “Pequena África”, denominação idealizada pelo célebre artista plástico e compositor Heitor dos Prazeres.
As atividades não só preservam e difundem a rica herança cultural afro-brasileira, mas também suscitam uma reflexão crítica sobre a nossa história, contribuindo para a construção de um futuro mais justo e inclusivo. Assim, o Museu Memorial Pretos Novos configura-se como um espaço de grande relevância social, servindo como um lembrete perene da resistência e resiliência dos povos africanos e como um farol de conhecimento e empatia para as gerações futuras. Esse espaço cultural é gerido pelo Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, declarado Patrimônio Cultural da Cidade do Rio de Janeiro por meio da Lei no. 8.277, de 3 abril de 2024.
Leia outra matéria no Harpia sobre o assunto:
Cemitério dos Pretos Novos: nova fase de escavações está sendo iniciada. Acesse.
Visite:
O Museu Memorial Pretos Novos fica na Rua Pedro Ernesto, 32, Gamboa. Rio de Janeiro, próximo ao VLT da Praça da Harmonia. Acesse
Pesquisas publicadas sobre o sítio arqueológico Cemitério dos Pretos Novos:
Artigo: “Paisagem, Morte e Controle Social: O Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos no Contexto Escravocrata do Rio de Janeiro nos Séculos XVIII e XIX”. Acesse.
Artigo: “Nada Além de Contas: Os Bens Pessoais dos Pretos Novos do Cemitério do Valongo”. Acesse.
Artigo: “Práticas Funerárias no Cemitério dos Pretos Novos: Violência Simbólica e Estrutura Panóptica de Poder”. Acesse.
Artigo: “Da Alfândega ao Valongo: A Entrada dos Cativos Africanos no Rio de Janeiro no Século Dezenove Sob uma Nova Perspectiva Historiográfica”. Acesse.
Dissertação de Mestrado: “Antes do Cativeiro: Saúde Bucal e Estilo de Vida dos Africanos Enterrados no Cemitério dos Pretos Novos – Rio de Janeiro” (O artigo está em elaboração).
Tese de Doutorado: “O Valongo Através de Um Outro Olhar: Arqueologia da Paisagem do Complexo Escravista do Rio de Janeiro no Século XIX”.
Conteúdo do Harpia Nº 30, outubro de 2024.