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Antonio Carlos de Souza Lima e a presença cotidiana no Museu

Quando cheguei ao Museu Nacional/UFRJ como aluno, no ano de 1980, me deparei com paredes adornadas por cartazes produzidos sob a gestão de Edgar Roquette-Pinto voltadas para a divulgação científica às escolas de ensino fundamental, numa ação que vinha, de outras formas, desde o século passado. Essa dedicação à troca de saberes por meio do diálogo é compartilhada por muitos que aqui trabalham ou estudam. Adicionalmente, nosso compromisso com o pioneirismo é evidente, como exemplificado pela nossa adesão à perspectiva decolonial em pesquisas antropológicas há décadas.

Um museu dos povos

Foi emblemático o lançamento do CD “Ilê Omolu Oxum: Cantigas e Toques para os Orixás”, durante as comemorações dos 186 anos do Museu Nacional/UFRJ, em 2004. Ritmos de candomblé, como o alujá e o opanijé, este dedicado ao orixá Omolu, foram tocados ao vivo na icônica escadaria do Paço de São Cristóvão pelos integrantes da casa de santo que fica em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Estavam presentes mais de 400 pessoas, incluindo autoridades, inclusive das grandes casas de culto do Rio de Janeiro, bem como um representante do Ministério da Cultura. Esse trabalho estava estruturalmente desenvolvido com eles e pelo olhar dos integrantes da casa de santo.

Lançamento do CD ‘Ilê Omolu Oxum: Cantigas e Toques para os Orixás’ em 2004

É importante destacar que a escolha do repertório foi feita pela Mãe Meninazinha de Oxum, com sugestões de outros membros do terreiro, sendo gravado entre 2001 e 2004. Todos os registros das sessões foram ouvidos, analisados e criticados por eles, tendo trechos regravados, segundo o desejo deles. Vale informar que os recursos que seriam direcionados à rubrica “direitos de execução e imagem” foram invertidos na segunda edição do disco de mil exemplares em maio de 2009, em acordo com a Mãe da casa de santo Ilê Omolu Oxum. Esse é um dos CDs que integra a Coleção Documentos Sonoros, coordenada pelo professor Edmundo Mendes Pereira, com a intenção de disponibilizar gravações e informações sobre expressões e gêneros musicais brasileiros, especialmente indígenas, afro-brasileiros e cultura popular.

Ritmos de candomblé tocados na icônica escadaria do Paço de São Cristóvão, sede do Museu Nacional/UFRJ

Tive a oportunidade de estar integrado em muitos momentos emblemáticos do Museu ao longo dessas décadas como esse lançamento. E pude conhecer de perto a instituição porque sempre me envolvi com postos administrativos, com o contato com colegas de todos os departamentos, e estive quase sempre presente no dia a dia do Museu, inclusive contribuindo com a busca de recursos para o desenvolvimento de pesquisas robustas de impacto nacional e manutenção de acervo, especialmente. Dentre estes, os projetos desenvolvidos conjuntamente com o professor João Pacheco de Oliveira sobre a situação das terras indígenas no Brasil, entre 1985 e1993; sobre as políticas indigenistas e indígenas dez anos após a Constituição de 1988, entre 1998 e 2003, em que realizamos grandes seminários com extensa presença indígena, ou ainda para a realização de cursos de formação em assuntos indígenas, em parceria com universidades do Norte do país; e mais tarde, outros apenas sob minha direção, são marcos essenciais de uma equipe do MN voltada fortemente para gerar as bases de transformações sociais rumo a uma sociedade e a um Estado efetivamente plurais e mais equânimes.

Os seminários foram precedidos por uma grande pesquisa nacional feita pelo João e por mim. E já no primeiro seminário, em 1999, colocamos em posição simétrica os procuradores da República, as lideranças indígenas, órgãos de estado, antropólogos e ONGs para discutir o futuro da política indigenista no Brasil. Esse tipo de perspectiva nos nossos trabalhos contribuiu significativamente para os avanços nessa área da vida social. Hoje destacaríamos e registraríamos todas estas atividades como de extensão, marcando nosso papel na inovação e transferência de conhecimentos à sociedade.

Minha trajetória profissional é marcada, pois, pelo forte comprometimento com os movimentos indígenas, pesquisa, orientação e docência. A pesquisa sempre fez parte da minha vida, desde a graduação, e a coisa mais importante é ver hoje que as pessoas que tive contato no Museu Nacional se tornaram relevantes no Brasil e no exterior, sejam as que acompanhei como orientador de iniciação científica, , quando eu ainda era estudante de doutorado e coordenador de pesquisas, sejam os estudantes que orientei no mestrado, doutorado ou supervisionei nas atividades de pós-doutorado. Sempre fui uma pessoa dedicada à instituição, ao coletivo da área de antropologia, valorizando o trabalho coletivo porque acredito que ninguém faz nada sozinho.

Os primórdios

Eu visitei o Museu na infância, uma ou duas vezes, mas minhas lembranças não são tão claras dessa época. Entretanto, ficou muito marcante a visita que fiz em 1976, quando cursava História na Universidade Federal Fluminense, e trabalhava como auxiliar de pesquisa. Uma professora me pediu para ver uma referência de texto com o professor Castro Faria. Era uma segunda-feira, dia de limpeza, e o Museu estava fechado para visitações, mas ninguém havia me avisado sobre isso. A sala do PPGAS, à qual eu fui direcionado, ficava no segundo andar, e entrava-se nela pelo meio. A sala do professor Castro ficava de fato no térreo. Quando cheguei, fiquei perdido em meio às exposições porque o elevador pelo qual eu subi não parava no andar quando acionado botão da chamada, e as escadas ficavam pouco visíveis para o desconhecedor. Por fim, consegui descer e o encontrei na cantina, vestindo guarda-pó, que era usual na época e pude, finalmente, apurar as informações com ele.

Nessa época da graduação em História, tive aulas com a professora Cláudia Sá Rego Ribeiro de Menezes, egressa do PPGAS. Os contatos com o conteúdo me fizeram pensar na relação Estado-Povos Indígenas, com o que percebi que poderia unir a crítica intelectual e a ação política. A partir desse momento, cursei todas as disciplinas disponíveis de antropologia na UFF e, como auxiliar de pesquisa, tive acesso a textos e filmes, além de fazer viagens relacionadas ao trabalho. Desde essa época da graduação, eu tinha muito claro que eu queria trabalhar com a questão indígena em perspectiva histórica. Eu não consegui ninguém que me orientasse na faculdade de história da UFF então comecei a pensar em outras possibilidades.

Como foi pelos textos que conheci os professores João Pacheco de Oliveira e o Otávio Velho, optei pela antropologia do Museu Nacional, sendo aprovado no mestrado em 1979, seis meses antes de concluir a graduação, e iniciando o curso em 1980. O Programa já era consolidado na antropologia naquele momento. Enquanto fiz o mestrado, eu participei ativamente de pesquisas, ao mesmo tempo que dava aulas em diferentes faculdades particulares. No doutorado, decidi me dedicar às pesquisas, contando com a orientação do professor Castro Faria, e participando de projetos coordenador pelo professor João Pacheco de Oliveira. Em certo momento, me dividi entre as pesquisas do Museu e as atividades de trabalho na Reitoria da UFRJ.

Com o passar dos anos, surgiu a possibilidade de ingressar como pesquisador em concurso para professor do Setor de Etnologia do Departamento de Antropologia, sendo realizado em setembro de 1988. Em primeiro lugar, ficou a antropóloga Bertha Ribeiro. Um ano depois, surgiu a segunda vaga e assumi em dezembro de 1989, ao mesmo tempo dando continuidade às minhas pesquisas de doutorado. Defendi meu doutorado logo após a morte súbita da minha mãe, em 1992. Essa defesa não significou a possibilidade de me tornar professor do PPGAS, o que ocorreu somente no segundo semestre de 1993. Para realizar as pesquisas, comecei desde cedo a buscar frentes de investimentos para mim, estudantes e outros interlocutores, o que foi essencial para realizá-las com melhor qualidade técnica e consequente impacto na área.

Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento
Memorável lançamento do CD ‘Ilê Omolu Oxum: Cantigas e Toques para os Orixás’, nos 186 anos do Museu Nacional

Junto com o professor João Pacheco de Oliveira, coordeno o Laced, que é o Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento. Diversos esforços desaguaram na criação dele, que foi formalizado em janeiro de 2001, em Congregação do Museu Nacional, como laboratório vinculado ao Setor de Etnologia e Etnografia do Departamento de Antropologia. Com atuação interdisciplinar, resumidamente, desenvolvemos pesquisas e intervenção junto a grupos sociais e dispositivos de Estado variados.

Entre as inúmeras iniciativas desenvolvidas ao longo dessas décadas, acredito que uma das minhas maiores contribuições aliando pesquisa e intervenção, em atividades de impacto e relevância social, além da crítica da tutela feita em diferentes momentos no meu trabalho individual e no das pessoas que orientei, tenha sido liderar o “Projeto Trilhas de Conhecimentos: O Ensino Superior de Indígenas no Brasil”. Ele agrupou muitas atividades, tendo diferentes fases de 2004 a 2009, e depois, com outros nomes e outras verbas, em projetos que se estenderam até 2022. Conseguimos recursos do CNPq, da Fundação Ford e da Faperj, principalmente, para desenvolver formações, seminários, vídeo aulas, entre outras atividades com abordagens pioneiras, sendo uma grande parte disponível a todos os interessados no site do Laced. Todo este material é de acesso livre e está acessível via o site do Laboratório. Só da Fundação Ford conquistamos 1 milhão e 200 mil dólares para Trilhas de Conhecimentos, o que foi muito útil, apesar da desvalorização do dólar ao longo do período.

Indignação e ação

Para mim é muito custoso lembrar de tudo o que perdi no incêndio de 2 de setembro de 2018. Meu sentimento é de indignação, porque acompanhei desde que eu entrei no Museu os diferentes diretores buscando recursos para melhorar as condições das instalações e a proteção do acervo, especialmente. Vi de perto todos os esforços, até porque exerci diversos cargos de administração acadêmica ao longo dessas décadas. Fui uma das pessoas que contribuiu com as inúmeras entrevistas para veículos de comunicação de todo o mundo, buscando esclarecer as dúvidas no momento do incêndio e constatar a ignorância geral, assim como o mar de fake news daquele momento não pode senão gerar revolta.

Só tenho como ficar indignado ao lembrar de tudo o que foi solicitado durante décadas, com projetos muito bem estruturados, e todo o descaso dos governantes. E, no pós-incêndio, ao mesmo tempo que chegava ajuda, chegavam também discursos inflamados e deturpações de toda a natureza de quem nem fazia e nem quer fazer ideia do que seja o Museu Nacional e, quiçá, de toda a dedicação das pessoas que passaram e continuam aqui. Vinham também discursos oportunistas de quem nunca quis saber o que era o Museu. Sobre esse momento, gosto sempre de pontuar que a CAPES, que eu fui o coordenador da área de Antropologia e Arqueologia de 2018 a 2022, e a FAPERJ foram as instituições que primeiramente nos acudiram, sendo fundamentais para a manutenção das atividades de investigação de pesquisadores e dos programas de pós-graduação. A CAPES também votou a manutenção das notas dos PPGs por dois quadriênios avaliativos. Depois chegaram as ajudas de diferentes esferas, estruturaram-se projetos com o notável empenho de muito em particular das diretorias capitaneadas pelo professor Alex Kellner, que são mantidas e ampliadas até hoje.

O Laced ficava na sala da Biblioteca Geral do Museu Nacional no prédio situado no Horto Botânico, mas como a sala estava muito deteriorada, anos antes do incêndio eu transferi todo meu material pessoal para minha sala no prédio do  Paço de São Cristóvão, e todo o trabalho que eu e meus colegas em muitos projetos geramos e compilamos foi perdido no incêndio. Eu não tenho mais tempo na vida para recompor tudo aquilo. A maioria não estava digitalizada, porque não era nem um costume na época, nem os meios técnicos eram facilmente acessíveis.

Ainda estou processando tudo o que o incêndio significou na minha vida. Estou aposentado, mas sigo trabalhando em tudo que fazia antes, menos administrar: afinal, muitos colegas sequer exerceram postos de chefia do Departamento de Antropologia e já até se aposentaram. Acho que apesar desses anos todos terem sido muito difíceis, era importante acompanhar pelo menos as pessoas que vieram trabalhar comigo, então sigo pesquisando e contribuindo com os pesquisadores no Museu Nacional/UFRJ, hoje, e também na UFF.

Sempre me coloquei em postos administrativos até a minha aposentadoria e considero que tenha sido realmente necessário ter essa presença cotidiana, além do que está previsto em ensino, pesquisa e extensão. No meu Memorial, vocês poderão conhecer a trajetória até 2015 em detalhes. De lá pra cá fiz muita coisa mais. Nele, eu concluo que sou uma pessoa que se permite levar pelo desconforto, angústia e curiosidade, até porque “o futuro a Deus pertence”, como diz o ditado. Concluo da mesma forma aqui.

 

Até breve!

Um abraço,

Antonio Carlos de Souza Lima

Professor Titular de Etnologia aposentado, que trabalha voluntariamente na área de pesquisas, sendo um dos coordenadores do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (Laced) do Museu Nacional/UFRJ. Bolsista 1A do CNPq e Cientistas do Nosso Estado da FAPERJ.

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