As músicas de protestos sociais e as conversas em língua espanhola sempre fizeram parte dos sons da casa de Anita Lino. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ (PPGAS), ela é musicista, multi-instrumentista, antropóloga social e linguista. A tese que está finalizando traz suas vivências por aldeias indígenas e assentamentos, pesquisando os usos rituais e oraculares do milho crioulo, partindo da Serra Mazateca de Oaxaca, no México, até as terras baixas da América do Sul. Ela acaba de lançar o álbum “Cantos de Terra”, expressando com sua banda seus aprendizados por essas andanças.
Harpia – Para começar eu gostaria que você falasse sobre o início dos seus estudos com o milho crioulo a partir de um pedido de uma indígena. Como foi essa experiência?
Anita Lino – Foi durante um campo de doutorado, muito difícil de fazer porque foi num momento de cortes de bolsas de pesquisa, mas aconteceu por meio de uma bolsa auxílio. Na Serra Mazateca, no México, reencontrei uma curandeira, que já a conhecia de outro momento, e participei de um ritual com o uso de “cogumelos mágicos”. Então a curandeira falou que os cogumelos estavam me dando a missão de trabalhar com o milho e organizar um congresso internacional sobre o milho crioulo – que é o milho nativo – em oposição ao milho transgênico, e convidar camponeses, indígenas e quem mais quisesse se juntar nessa troca de saberes e sementes. Foi muito forte receber essa incumbência, e, ao longo dos dias, fomos conversando e isso passou a ficar mais claro. À primeira instância, me pareceu bem inviável, mas hoje vejo como algo possível. Daí veio a pandemia e ele ainda não teve como acontecer como ela tinha descrito, mas estou com esse compromisso pessoal, mesmo após a entrega da tese no início do próximo ano.
Harpia – E você mudou sua pesquisa? Nesse momento, você já tinha um tema ou ainda não tinha definido?
Anita Lino – Eu ainda estava pensando, e foi num momento que eu estava estudando muito sobre a linguagem, sobre a fofoca – o “chisme” -, que lá entre os mazatecos tem um grau de cuidado especial, porque uma vítima de uma mentira pode adoecer e até morrer, sendo algo muito perigoso. Já estava pesquisando isso e, de repente, meu mundo virou o milho. A curandeira falou para eu estudar o milho em outras regiões da América, no meu país inclusive, e trazer aportes para esse congresso. Foi isso o que disseram para ela “los santitos” também chamados de “niños que brotam” ou “honguitos”, entre outras expressões. Para fazer a pesquisa científica sobre o milho crioulo, cheguei a estudar arqueologia para entender o processo de plantio e toda sua história. E, no trabalho de campo, eu pesquisei sobre os usos rituais e oraculares do milho crioulo, com a minha tese focando mais profundamente na parte mazateca – de Huautla de Jiménez, região de La Cañada, no México, e traçando paralelos com outros diversos lugares.
Harpia – Você está fazendo essas andanças por tantas aldeias e assentamentos, o que você viu e sentiu durante esses momentos, que você traz hoje com você?
Anita Lino – Nossa, que pergunta bonita! Nessas andanças, parece que vivi um pouco de todas as letras de músicas que eu escutava lá na infância, que os meus pais colocavam para tocar, principalmente as músicas de protesto como as da Mercedes Sosa e suas canções com raízes na música folclórica argentina. Percebo que vivi todo o conteúdo expressivo daquelas letras, e percebi que é nessa relação com a terra que está o futuro: um futuro ancestral. Fiz muito trabalho de campo no Assentamento Bela Vista, no Sítio Mãe Terra, que fica no município de Iperó, e vi que a Maria conversava com as plantas de uma forma muito única e essa foi a maior transformação pessoal nesse trabalho. Ela me contou que brincava na infância com palhas de milho, fazendo bonecas, e que a palha servia também para ser colocada na cama, seus pais colocavam para a cama ficar mais macia, proporcionando melhores sonhos. Eu sou da cidade e nunca tinha pegado numa enxada e essas andanças me possibilitaram ter esse contato mais próximo com a terra e todos esses fatores expressivos que tanto me encantavam desde pequena.
Harpia – Como era a sua participação nos assentamentos?
Anita Lino – Eu participava das organizações da CSA, que é a comunidade que sustenta a agricultura, e, no Sítio Mãe Terra, eles trabalham com o cultivo de alimentos orgânicos, de forma agroecológica e biodinâmica. E eu também contribui com a organização dos eventos, sempre tocando, então, eu levava a “mística”, que é o momento que você pode se alimentar sutilmente, estando junto aos alimentos, à música e aos sons dali. Isso foi entre 2018 e 2020, quando eu morava pertinho, em Sorocaba, dava para ir e voltar com frequência. Eu e a Maria criamos um laço de amizade e companheirismo, e ela chegou a ir à minha casa também. A Maria é muito influente e já fez muita história no MST, sempre encabeçou e é ela que toma as decisões ali.
Harpia – Imagino que a música tenha te aproximado mais das pessoas por onde passou. Como a música fez parte dessas suas experiências e como foi a construção do “Cantos de Terra”, o álbum que você acaba de lançar com seu Grupo Terra Livre?
Anita Lino – Desde a minha graduação a música já fazia parte das minhas pesquisas, e a minha monografia foi ambientada nos Andes Centrais do Peru. Depois de lá, no mestrado e doutorado, nas idas ao México, principalmente em Huautla de Jiménez, eu levava meu tambor e também outros instrumentos, inclusive um egípcio, o derbake. Pra você ter uma ideia, me chamaram até para tocar em velórios, e eu não entendi muito, mas, no final, eles me agradeceram, contaram que tinham se emocionado. E nas “veladas”, que são rituais de cura realizados durante a noite e a madrugada, os cantos são muito bem-vindos, por mais que os cantos não fossem de lá, e até existe um espaço dedicado aos agradecimentos para esses cantos. Alguns cantos eram feitos ali mesmo, sendo um momento importante da interação com os curandeiros e com o mundo outro. Tem um canto desse álbum que se chama “Oración de Abuela”, ele surgiu durante uma “velada” em 2016.
Harpia – E como foi?
Anita Lino – No meio da “velada” apareceu para mim a minha avó, já falecida, que tinha ascendência na etnia indígena Kariri-Xocó, e eu comuniquei a sua “presença” para a curandeira. Ela então falou para eu pedir para a minha avó a indicação de quatro ervas curativas para o meu povo, e disse que eu precisava cantar estas quatro ervas; falou para que eu confiasse nos “santitos” (os cogumelos) e disse que “Diosito” iria me ajudar a cantá-las. Quando eu conto isso para algumas pessoas com o pensamento ocidental, vejo que elas ficam meio assustadas. E isso foi com a minha avó paterna, que tem uma história muito bonita: mulher lavadeira nordestina, ela veio com os filhos de Sergipe para São Paulo em maria-fumaça (14 dias de viagem), fugindo da seca; e foi muito emocionante para mim esse momento de “reencontro” durante a “velada”, porque eu era muito grudada com ela quando ela era viva (eu tinha apenas 11 anos quando ela faleceu). Nessa visão, a minha avó me falou: arruda, alecrim, louro e guaco, traduzi para a curandeira e ela pediu para eu cantar essas ervas muito sagradas como uma oração. E veio esse canto que agora está eternizado no álbum. Essa “velada” aconteceu em 2016, durante meu trabalho de campo para mestrado, onde eu escrevo sobre essa experiência: “Palavra florida: Sobre cantos e viagens entre os mazatecos de Oaxaca, México“, defendida em fevereiro de 2017.
Harpia – Que momento especial. E você compôs na hora ou foi construindo a música depois de um tempo?
Anita Lino – Na hora, vieram as quatro rezas para as quatro ervas. Para a arruda: “Le pido a la ruda / Yo le pido protección / Que nos libre de todo el mal / Y nos traiga sanación!”. Para o alecrim: “Le pido al romero / Con su rico olor / Qué nos purifique por dentro / Y nos traiga un gran valor!”. Para o guaco: “Yo le pido al sauco / La respiración / Qué seamos sanos para el trabajo // Y veamos la verdad de su curación”. E, por fim, para o louro: “Y al laurel / Con su rico sabor / Le pido el sonido / Que dignifique nuestra voz!”. Dentro de algumas cosmovisões indígenas você conversa e faz perguntas para as plantas e elas te respondem de outras formas. Apresentei essas rezas que surgiram na “velada” pelas minhas andanças a outras pessoas, e fui percebendo que a música cabia dentro de uma trova: fui colocando outros versos em português que citam a terra, o trabalho no campo, a justiça, o amor, a vida… Fiquei muito maravilhada com essas ervas sagradas.
Ouça a música aqui no YouTube:
Harpia – Estes dias, ouvi suas músicas e percebi que você usa algumas expressões indígenas. Como é esse processo de aprendizado e composição?
Anita Lino – O início mesmo, quando comecei a estudar a gramática de algumas línguas indígenas foi na Pontificia Universidad Católica del Perú. Depois que ingressei no Museu Nacional, isso foi ainda mais aprofundado com a professora Bruna Franchetto, que é antropóloga e também linguista, especialista em línguas indígenas sul-americanas, quem muito trabalhou e trabalha com línguas indígenas do Xingu. O estudo de outras línguas sempre foi muito divertido para mim, antes de tudo. E sei que uma tradução nunca é perfeita, e ela dá abertura para outras coisas. Todo o álbum “Cantos de Terra” tem a participação de todos da banda e dos especialistas no estúdio. Como o álbum conta com músicas em Guarani Mbya, convidei o pessoal do Grupo para ir à Terra Indígena do Jaraguá, em São Paulo, o que foi muito importante para que os músicos pudessem conhecer mais sobre a cultura e as tradições deste povo de luta. Entretanto, a pandemia impediu de fazermos mais visitas e estudos de campo em grupo, atrapalhando inclusive, até a nossa celebração após o álbum finalizado. Aliás, “Pequeno Sol” é um canto-homenagem, que está em um videoclipe-documentário, mostrando que, cinco séculos após a invasão, os indígenas continuam lutando constantemente em defesa de seu território e em defesa da floresta. E ele foi inspirado no rezo “Nhamandu Mirim”, do Povo Guarani Mbya, homenageando a sua luta e resistência, e à memória de todas as árvores do Centro Ecológico Yary Ty, que foram derrubadas (No final, tem o link para o documentário).
Harpia – Você também canta algumas músicas em espanhol… De onde vem esse contato estreito com o idioma?
Anita Lino – Minha mãe era professora de espanhol, então ouvíamos muitas músicas em espanhol e meu pai foi seminarista, muito ligado à Teologia da Libertação, mas ele se decepcionou com a igreja e até hoje é professor na área de Humanas. Sempre foi comum, desde a infância, meus pais, meu irmão e eu conversarmos em espanhol em casa, mas não temos nenhuma ascendência hispânica. Sempre recebemos muitos amigos hispano-hablantes em casa, e sempre nos pareceu uma linguagem muito gostosa. Hoje, meu irmão é ator, escritor e produtor musical mais ligado à cultura pop, e eu sou mais envolvida com as canções indígenas e folclóricas da Latino-América.
Harpia – Seu nome é Ana Paula. Quando você passou a ser chamada de Anita?
Anita Lino – Em casa eu era chamada de Ana Paula, Aninha, Paula, Paulinha… Mas quando fui fazer intercâmbios em Buenos Aires e, depois no Peru, fui sendo chamada de Anita. E eu gostei e passei a adotar por conta de mulheres que admiro como Anita Garibaldi, Anita Prestes… Personagens inspiradoras como elas e outros que fazem parte da minha vida, e lembro que quando eu era pequena na parede da minha casa tinha um quadro com a imagem de Che Guevara. Anita, então, me pareceu um nome bonito e comecei a adotá-lo como nome artístico.
Harpia – Você é multi-instrumentista. Chegou a aprender em escola de música ou algo assim?
Anita Lino – Aprendi violão com o meu pai, e o primeiro instrumento que tive muita vontade de tocar foi o berimbau. Então, fui praticar capoeira e aprender berimbau. Depois disso, vieram outros instrumentos de percussão e alguns aprendi a tocar sozinha mesmo. Uma coisa muito interessante que me aconteceu foi conhecer artistas de rua peruanos, que viviam aqui perto de onde moro, em Santa Bárbara (SP), e tocavam músicas folclóricas nas ruas e festas com diferentes instrumentos andinos. Vê-los tocar foi me abrindo um mundo especial. Eu chegava da Unicamp e ia direto pra casa deles aprender com eles. Depois disso, nos intercâmbios, tive contatos com professores que são artistas de rua, inclusive um que constrói seus próprios instrumentos: Francisco Javier Luna. E essa mistureba toda me deixou sem limites para aprender a tocá-los também. De cordas, eu toco violão, charango, vihuela mexicana; percussão: djembê, derbake, berimbau, berimbau de boca, tabla indiana, udu (vasos/moringas), bumbo legüero; de instrumentos de sopro: flauta doce (sopranino, soprano e alto), flauta tin wistle (flauta irlandesa), fujara, pífano; e na voz, além de cantar as músicas, faço “guapeos”, que são os gritinhos agudos ao estilo huancaíno dos Andes Centrais do Peru, e vocalizações.
Harpia – Onde o público pode ouvir o “Cantos de Terra”?
Anita Lino – Ele está em todas as plataformas de streaming Spotify, Deezer… e, também está completo no canal do YouTube do Grupo Terra Livre. No Instagram: @grupoterralivre e o meu pessoal: @anita.lino .
Ouça agora:
Assista ao mini-documentário com a música ‘Pequeno Sol’: