Enquanto tivermos os conhecimentos dos pesquisadores do Museu Nacional/UFRJ sendo transmitidos, nossa instituição continuará vivendo, concorda? Penso isso especialmente a partir de toda a experiência que tive com a professora Cátia Mello Patiu desde a iniciação científica, no meu segundo semestre de graduação. Ela nos deixou muito cedo, no final do ano passado. E percebo que vou continuar minha vida com tudo o que ela me ensinou e que, assim espero, irei repassar para outros estudantes no futuro. Sei que esses conhecimentos permanecerão vivos de alguma forma, com as raízes de tudo o que a gente vivenciou.
O incêndio do Museu, sem dúvidas, foi algo muito trágico, mas a gente consegue buscar recuperar as coleções e dar soluções ao longo do tempo. Já a morte em si não tem jeito, mas percebo que a professora Cátia, tendo nos transmitido tantos conhecimentos, se mantém viva como pesquisadora, de alguma forma. Na vida, há momentos tristes, mas é importante perceber como superá-los para continuar a fazer o que já fazíamos, mesmo que agora seja de uma forma diferente. Nunca será igual e entendo que há ensinamentos sobre aspectos diferentes.
Olhando lá atrás, quando ingressei na graduação, nem imaginaria que seria um entomólogo. Mas, dia a dia, a professora Cátia foi me passando todo o seu encanto pelas espécies de moscas que ela pesquisava com tanta dedicação. É por conta dessa experiência na iniciação científica que hoje estou nessa área. Compartilho agora com vocês uma história muito bonita e inspiradora, que pudemos concretizá-la recentemente.
A professora Cátia desejava homenagear seu marido, Claudemir Patiu, e seus filhos, Fabio e Felippe, sendo um dos últimos pedidos que ela me fez. E, em julho, foi publicado meu artigo sobre o gênero Dexosarcophaga com a descrição de oito espécies novas no “European Journal of Taxonomy”, incluindo a D. patiuorum.
Uma pena ela não ter concluído esse desejo de homenagem em vida. Foi muito especial ter contribuído com esse lindo gesto dela e transmitido à sua família, que ficou muito emocionada. Eu já considerava muito interessante ver o Patiu contribuindo nos trabalhos de campo, mesmo ele não sendo da área. Como um grande companheiro da professora, ele sabia até fazer as armadilhas para nos ajudar a capturar as moscas para os nossos estudos científicos.
Nesse artigo, estão outras duas homenagens: a espécie D. phoenix é dedicada à comunidade do Museu Nacional/UFRJ por se manter forte e resiliente neste nosso momento de reconstrução. E prestei também uma homenagem à minha irmã, Jandaína Oliveira, com a D. jandainae, seguindo esse exemplo tão bonito da professora Cátia de valorizar a família.
Parcerias e incentivos essenciais
Muito mais do que a pandemia, vivi no doutorado dois momentos muito críticos. Além dessa perda tão precoce da professora Cátia Mello Patiu no ano passado, logo no início do doutorado tive uma perda bem emblemática e você certamente vivenciou algo parecido de alguma forma. Naquele fatídico setembro de 2018, perdemos nossas coleções de moscas, incluindo todo o material que seria o tema do meu doutorado e também o que pesquisei no meu mestrado. Precisei mudar de tema e de espécies a serem estudadas, e contamos com as parcerias internacionais construídas pela professora Cátia ao longo de sua trajetória acadêmica.
Conto hoje com a orientação da professora Márcia Couri e a coorientação desde setembro de 2018, do professor Pablo Mulieri do Museo Argentino de Ciencias Naturales “Bernadino Rivadavia” (MACN), na Argentina. Aliás, meu trabalho de campo foi realizado lá graças aos recursos financeiros que a National Geographic Society forneceu aos alunos do Museu após o incêndio. Na época, eles vieram para avaliar projetos de pesquisa inscritos para esse processo de reconstrução, e decidimos submeter o nosso. Conseguimos e, assim, pude pesquisar na Argentina durante cinco meses, pegando os dados que eu precisava para desenvolver a tese do doutorado. Mas não era tudo.
É complexo trabalhar com sistemática e filogenia porque precisamos trabalhar com um grupo de organismos e muitas vezes ele não está completo em uma única coleção. E foi o que aconteceu porque mais da metade estava lá no MACN e a outra parte no Canadá e em outras coleções dos Estados Unidos. Ficamos buscando as mais diferentes possibilidades de acesso aos materiais, inclusive por imagens. E foi muito bacana que a California Academy of Sciences nos emprestou mais de 800 exemplares do gênero Microcerella, que é o foco da minha tese de doutorado.
Também pesquisei no Canadian National Collection of Insects, em Ottawa, Canadá, por ter conseguido um financiamento do Museum of Comparative Zoology (MCZ), da Universidade de Harvard, específico para visitar coleções. E também recebemos um financiamento emergencial do PPGZoo para os estudantes que tiveram seu projeto de pesquisa prejudicado pelo incêndio. Foi bem em 2020, então essa ida foi adiada pela pandemia de Covid-19, porque o Canadá estava com as fronteiras bem restritas. Consegui viajar para lá somente em janeiro de 2022, pegando o rigoroso inverno. Agora, consegui recuperar o tempo de pesquisa.
Empatia nas instituições do exterior
Todos ficam curiosos sobre a questão do incêndio, como minha pesquisa foi afetada e o nosso processo de reconstrução. De certa forma, as pessoas entendem que eventualidades podem acontecer em qualquer local. Muitos deles se solidarizam, demonstrando entendimento que coleções podem ser perdidas com incêndio ou eventos naturais, como terremotos ou furacões. Até me surpreendi, supondo que seria difícil conseguir acesso a coleções de outras instituições, mas tenho recebido mais respostas positivas em diversas situações. Percebo que os pesquisadores acabam se colocando no nosso lugar e se solidarizando. É uma surpresa positiva. Essa rede de pesquisadores, que colaboram entre si, é fundamental.
Tanto no “sanduíche” do doutorado na Argentina quanto no Canadá fui muito bem recebido por todos. Ao falar que eu já estava no Museu em 2018, percebo que as pessoas ficam curiosas sobre como foram as perdas do material que seria da tese, o que é natural. Compreendo que seja importante contarmos que estamos nessa reconstrução, passando essa experiência de força e resiliência de todos nós para o mundo inteiro.
Recomeço com visão de futuro
O Museu Nacional/UFRJ é uma instituição que tem um aspecto forte em programas de pós-graduação. Por isso, temos as sólidas relações de parceria de tão longa data, com as doações chegando, assim como todo o trabalho institucional de sensibilização no Brasil e no exterior. Além disso, temos os pesquisadores empenhados nos seus trabalhos de campo para recompor os acervos científicos e expositivos. Pela frente, temos os futuros estudantes trazendo suas vontades de pesquisar e contribuir para a recomposição do nosso importante museu de história natural e de antropologia. E esses futuros pesquisadores do Museu vão, certamente, conhecer o que passamos e dar continuidade a essa necessidade de aprendizado sobre o que vivenciamos para que esse episódio não se repita mais.
Vamos permanecer fazendo o que estamos fazendo, deixando nossas contribuições com o que estiver ao nosso alcance para ficar para essas futuras gerações de pesquisadores do Museu Nacional/UFRJ. É algo especial podermos desde já recompor nossos acervos e contribuirmos com nossas publicações. Percebo que tudo o que já produzimos está eternizado de certa forma.
Cada pessoa que está no Museu hoje tem seu papel importante para nossa instituição. E me refiro a todas as funções, com seus diferentes tipos de vínculo com a instituição, porque elas têm sua igualdade de importância nesta reconstrução. Chegamos até aqui e somente conseguiremos concretizar de fato esse processo porque todos nós estamos juntos e empenhados. E precisamos nos unir ainda mais.
Vamos conseguir!
Um abraço,
Josenilson Santos
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas – Zoologia (PPGZoo) do Museu Nacional/UFRJ.