Alinhada à inovadora linha curatorial das Coleções Etnológicas do Museu Nacional/UFRJ, acaba de ser efetivada a contratação do nosso primeiro curador indígena: o escritor, professor, antropólogo e líder Tonico Benites Guarani-Kaiowá. Ele é também o primeiro indígena a obter o título de doutorado no Museu, tendo sua história iniciada com a gente em 2006. Essa parceria é resultado de uma consistente relação da nossa instituição com o povo Guarani-Kaiowá há mais de quatro décadas.
“Receber o convite para ser contratado como curador é um reconhecimento do trabalho que comecei no Museu Nacional, como estudante, como bolsista e como voluntário. Só me dá mais força para o trabalho, para articular mais e conseguir mais peças nas comunidades. É um trabalho sério e importante para o povo indígena. Estou lidando com a memória, com a história e a trajetória de várias pessoas, de várias lideranças importantes, que algumas não se encontram mais com a gente. É uma valorização da luta coletiva também, porque algumas peças foram encontradas junto aos corpos de indígenas assassinados ou em casas de reza incendiadas. Eu confio no Museu como espaço importante e de grande responsabilidade. Está sendo uma oportunidade: reconstruir, discutir e conversar sobre essas novas coleções. Sempre me coloco à disposição. Não me sinto sozinho, mas envolvido mesmo, porque eu conto com meu povo, com a equipe do Setor e com o professor João”, avalia o curador Tonico Benites Guarani-Kaiowá. E completa: “Queremos que esse trabalho tenha uma importância para o Museu Nacional, que cuida desse patrimônio nacional, então estamos trabalhando com toda a seriedade porque isso será lembrado para sempre”.
Esse contrato está sendo feito por meio de projeto do Setor de Etnologia e Etnografia financiado pelo Instituto Cultural Vale. Formalmente, foi firmado agora em 2022 esse contrato, mas o Tonico já contribui com a recomposição do acervo para o Museu Nacional/UFRJ de forma direta e voluntária, desde setembro de 2018. Mais adiante, nesta matéria, iremos detalhar essa história. A ideia é que esse trabalho de curadoria do Tonico Benites seja realizado futuramente em outras regiões do Brasil, com mais povos indígenas, além do Mato Grosso do Sul, onde Tonico reside atualmente e que tem quarenta comunidades indígenas.
Consistência do vínculo antes do convite
O professor e curador das Coleções Etnológicas do Museu Nacional/UFRJ, João Pacheco de Oliveira, ressalta: “Esse convite para o Tonico Benites ser nosso curador não é um modismo, muito pelo contrário: é resultado de uma consistente relação com os Guarani-Kaiowá de mais de quatro décadas. Tudo se deu de forma natural, sendo fruto de um vínculo construído na formação profissional e no trabalho de pesquisa de forma continuada, passando por uma linhagem de pesquisadores, doutores e professores de universidades federais, que estudaram os Guarani-Kaiowá no Museu”. Eles foram contribuindo de forma bem completa em outras atividades além das pesquisas, como relatórios e laudos técnicos para demarcação de terras, assim como em programas de educação.
O primeiro deles foi o Rubem Ferreira Thomaz de Almeida, conhecido como Rubinho, que foi orientando do professor João Pacheco no início da década de 1980. Foi uma pessoa muito querida dos Guarani e sua dissertação de mestrado resultou em um livro. Depois dele vieram outras pessoas, como o pesquisador italiano Fabio Mura, que realizou seu mestrado e doutorado no Museu. A esposa dele, Alexandra Barbosa, também fez a mesma trajetória de pesquisar os Guarani-Kaiowá. E esse casal hoje trabalha como professores da UFPB, na Paraíba, e tem importante atuação na Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Depois deles veio também o Pablo Barbosa, que atualmente é professor da UFSB, no Sul da Bahia, e fez o mestrado e o doutorado no Museu, que fez pesquisa histórica e de campo junto aos Guarani-Kaiowá. “Foi por meio do contato com o Fabio Mura na universidade, em Campo Grande, que o Tonico viu que a Antropologia é algo bonito e importante para os indígenas, e sentiu que ele deveria seguir esse caminho. Foi isso o que aconteceu: ele veio para fazer o mestrando em Antropologia no Museu Nacional, e ficou conosco no mestrado e doutorado, incluindo depois um retorno para o pós-doutorado com bolsa da Faperj por dois anos”, conta o professor João Pacheco.
Quando concluiu as atividades de pós-doutorado, Tonico voltou para o Mato Grosso do Sul, pelas suas responsabilidades, porque ele é também um representante importante dos indígenas, sendo uma liderança destacada. Atuou muito no Ati-Guaçu, que é uma grande assembleia dos indígenas, como uma espécie de parlamento indígena, com estrutura horizontalizada, sendo realizada sempre que há necessidade. Tonico sempre foi um interlocutor importante para os indígenas junto às autoridades brasileiras, como a Procuradoria Geral da República, a Funai, o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, por exemplo. “É essa diversidade das experiências que ele carrega, bem como a densidade dos vínculos com o Museu, especialmente comigo, que ele foi escolhido para ser curador dessas importantes coleções. Eu nunca estudei os Guarani-Kaiowá, mas, através da minha função de professor, acabei orientando toda essa linhagem de destacados pesquisadores sobre os Kaiowá, o que chegou ao ápice com a própria vinda do Tonico Benites, como um indígena fazendo esse caminho na Antropologia”, pontua o professor João Pacheco de Oliveira.
Compromisso com a descolonização nas coleções
Os visitantes das futuras exposições do Museu Nacional/UFRJ terão uma experiência bem diferente da que o Tonico Benites teve em 2006, quando visitou nossas exposições pela primeira vez e iniciou seu mestrado. Nessa época ele viu numa exposição uma xilogravura de livro do explorador alemão Hans Staden, de 1557, que retratava o canibalismo em uma das paredes do Paço de São Cristóvão, sede principal do Museu. Ao vê-la, Tonico ficou chocado e foi conversar com o professor João Pacheco, informando do seu incômodo, ao que o seu orientador lhe respondeu que era justamente a sua missão acadêmica modificar as imagens estigmatizantes e etnocêntricas sobre os indígenas. Essa linha curatorial ainda carregava, infelizmente, vestígios históricos de exposições como a realizada em 1882, que apresentava alguns indígenas dos povos Xerente e Botocudo, pessoalmente, como atração aos visitantes do Museu.
Antes de setembro de 2018, já estava sendo iniciada a abordagem de dialogar com os povos indígenas, afrodescendentes e representantes de tradições populares, buscando consultá-los sobre quais peças eles desejam exibir no Museu, informando como devem ser identificadas, armazenadas e exibidas. Com a necessidade de recompor todo o acervo expositivo, o professor e curador das Coleções do Setor de Etnologia e Etnografia, João Pacheco de Oliveira, compartilhou com os colegas a ideia da implementação definitiva dessa nova linha curatorial para todo o acervo etnológico e etnográfico.
Ao mesmo tempo, também após o fatídico incêndio em setembro de 2018, o antropólogo Tonico Benites Guarani-Kaiowá, seu ex-aluno, ligou se solidarizando e se oferecendo para iniciar esses diálogos com os Guarani-Kaiowá. Essa conversa tinha sido iniciada, anos antes, quando um grupo de indígenas veio ao Rio de Janeiro para um evento do Museu do Índio. O Tonico aproveitou a oportunidade para levá-los ao Museu Nacional e estava presente o xamã Atanás, um grande líder religioso dos Guarani-Kaiowá. Eles avaliaram nossas peças, nos orientando na melhor direção cultural para a exposição e o armazenamento delas. No final, o professor João Pacheco perguntou se eles desejariam nos ajudar a formar uma nova coleção para o Museu Nacional/UFRJ, refletindo o momento atual dos Guarani. A exposição que tínhamos apresentava peças de antes da década de 1940.
“Lembro que fiz uma pergunta provocativa, questionando se a nova coleção que eles iriam nos ajudar a compor seria tão importante quanto a que a gente já tinha. Eles riram muito e me responderam à altura: que a nova seria muito melhor do que a que estava em exposição, porque seria feita pelo olhar dos especialistas e através dos especialistas. Essa conversa foi muito marcante na minha vida enquanto curador”, destaca o professor João Pacheco. Na hora, o xamã Atanás se dirigiu ao Tonico e o apontou como a pessoa mais conectada com o Museu para essa tarefa.
Assim, Tonico está desde 2018 reunindo um significativo conjunto de peças, especialmente em trabalho sobre as casas de reza dos Guarani-Kaiowá, que são espaços importantes que vêm sendo incendiados, como atos de violência e aversão cultural aos indígenas. Ele está ajudando também a reconstruir essas casas de reza e os objetos rituais importantes junto ao xamã Atanás. O professor João Pacheco manifesta como sendo essencial que a UFRJ busque formas para contratar de forma permanentemente o Tonico como curador, para que ele tenha dedicação exclusiva a esse importante trabalho curatorial.
Quem é Tonico Benites Guarani-Kaiowá?
Resumidamente, além de curador do Museu Nacional/UFRJ, Tonico Benites Guarani-Kaiowá é uma liderança indígena destacada e um interlocutor junto às autoridades brasileiras. É autor de livros como: “A Escola na Ótica dos Ava Kaiowá: Impactos e Interpretações Indígenas”, amplamente adotado em programas de pós-graduação, e “Avañe’e”, em língua guarani, que tem o objetivo de valorizar e fortalecer a identidade étnica. Possui uma vasta produção científica, inclusive com trabalhos publicados e com participações em conferências no exterior e no Brasil. Também é professor visitante e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima. Suas pesquisas têm ênfase em Antropologia da educação, rural, relações interétnicas, atuando principalmente nos seguintes temas: o movimento étnico-político dos povos indígenas, movimento do povo Guarani-Kaiowá, violações de direitos humanos e indígenas, violências contra os povos indígenas Guarani-Kaiowá, educação indígena e educação escolar intercultural e bilíngues.
Saiba mais:
- Acaba de ser publicada matéria sobre o Museu Nacional/UFRJ no jornal estadunidense New York Times: “Can a National Museum Rebuild Its Collection Without Colonialism?”, em inglês. Acesse.
- Leia a matéria “Nossas Coleções Etnológicas renascem de forma inovadora” publicada no boletim Harpia. Leia também.