São muitas as festas que deixaram de ser realizadas em sua plenitude nesta pandemia, como este Carnaval, que precisou ser adiado no calendário festivo. Nesta edição do Harpia, conversamos com duas antropólogas que pesquisam as festas para nos trazer um panorama sobre este momento. A professora da Universidade Federal Fluminense, Renata de Sá Gonçalves, nos fala sobre o tema do livro “A Falta que A Festa Faz: celebrações populares e antropologia na pandemia” e a professora do Museu Nacional/UFRJ, Renata Menezes, nos apresenta o Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado: o Ludens.
‘Tudo fica comprometido se não há a plenitude da participação nas festas’, Renata de Sá Gonçalves
Você pode imaginar como as festas responderam a sua suspensão durante a pandemia? Um livro dedicado ao tema acaba de ser publicado pela Série Livros Digital do Museu Nacional, com o título “A Falta que A Festa Faz – celebrações populares e antropologia na pandemia”. Ele conta com a participação de 33 pesquisadores. A partir de encontros sobre as festas populares e celebrações rituais festivas observadas em distintas regiões do Brasil, e algumas fora do país, eles registraram as adaptações que foram necessárias e também os desafios e as possibilidades de novos arranjos com as transmissões on-line, entre outras alternativas descobertas. Esses encontros foram coordenados por Maria Laura Cavalcanti, Renata de Sá Gonçalves, Hugo Menezes, Joana Corrêa e Ricardo Barbieri em 2021.
“As festas fazem muita falta, e uma série de prejuízos e impactos em diferentes aspectos sociais e culturais continuam acontecendo – e ainda não sabemos até quando. Vale destacar que, no Brasil, as festas têm uma presença em todo o seu território e em sua diversidade também expressam o caráter muito integrador que desempenham. E, para que elas aconteçam, são envolvidos diferentes grupos sociais e pessoas em atividades com muita dedicação para que se tenha comida, música, dança, figurino, canto, oração e devoção. Então há uma grande falta quando não se pode vivenciar a plenitude da participação nas festas”, avalia a antropóloga Renata de Sá Gonçalves, que é coordenadora do Núcleo de Antropologia das Artes, Rituais e Sociabilidades Urbanas (NARUA) da UFF, e organizadora desse livro com a antropóloga Maria Laura Cavalcanti do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia /IFCS/UFRJ.
Renata destaca que isso está relatado no livro por meio de 21 registros de como as grandes e pequenas festas do calendário popular tradicional lidaram com a excepcionalidade do período da pandemia em 2020 e 2021. O livro percorre as folias de reis; os carnavais e suas danças; a Semana Santa e o Divino; o fandango caiçara; o forró; o repente e as quadrilhas; os bumbas e bumbás; as festas de São Benedito, de São Tomé, de Sant’Ana do Caicó; o dia dos santos Cosme e Damião; o congado; o círio de Nazaré e as Chiquitas; bem como as celebrações pantaneiras. O percurso pela diversidade cultural brasileira abre-se ainda para o circuito lusófono do Divino, para os menestréis sul-africanos e os carnavais uruguaianos.
“Não ter o Carnaval, entre outras festas, não é uma bobagem, porque ele segue um calendário anual e cíclico, que marca a passagem do tempo nas relações humanas e a ocupação dos espaços nas casas, e nas ruas, os encontros sociais ao longo de toda a sua preparação e esse é um tema muito importante para a antropologia”, explica a professora.
Renata Gonçalves explica que o grande inaugurador dessa perspectiva de falar da sociedade brasileira a partir do Carnaval é o antropólogo, ex-professor do Museu Nacional, Roberto DaMatta: “No livro ‘Carnavais, Malandros e Heróis’, de 1979, ele já analisava o Carnaval como porta de entrada para a interpretação da sociedade brasileira que é bastante diversificada e hierarquizada, e que o Carnaval é o momento que as pessoas se juntam em torno da possibilidade de encontros e inversões, e que isso se faz e se refaz na própria sociedade”.
São muitos Carnavais no Brasil. Mesmo olhando para o Rio de Janeiro, há diferentes tipos de festas, de diferentes tamanhos e estilos como escolas de samba, blocos de rua, festas em clubes e salões, bailes, entre outros, cobrando ou não ingressos, e contando ou não com patrocinadores. “Estamos em um momento também de reflexão e de conjunção de muitos aspectos sociais, onde estão ocorrendo impactos de diferentes ordens. Desde os preparativos das festas, são muitos profissionais envolvidos e, com a circulação das pessoas impedida pela pandemia, há impactos no turismo, na economia, nas relações de trabalho e familiares, além de barreiras para a circulação de saberes entre as gerações”, avalia Renata.
Ela acompanha há algum tempo o tradicional projeto social voltado para o ensino da dança de mestre-sala e porta-bandeira, coordenado por Manoel Dionísio, que suas aulas ocorriam aos sábados, ao longo do ano e próximo ao Sambódromo. Mas ele precisou ficar parado por quase dois anos, porque não houve interesse e não era fácil o acesso e a adaptação para as aulas remotas, além das dificuldades de ensinar e corrigir os movimentos das coreografias à distância e sem os pares estarem juntos. Ainda assim, foram organizadas conversas transmitidas ao vivo pelo Mestre Dionísio, bem como uma rede de apoio e contato se manteve por meio dos encontros virtuais.
Festas adaptadas às transmissões on-line
Já existiam encontros virtuais das escolas de samba do Rio para a realização de atividades diversas e trocas culturais, inclusive com integrantes e profissionais de escolas de samba em outras cidades, estados e países, como mostram os autores Camilo Delgado e Ulisses Duarte com os Carnavais no Brasil e no Uruguai, mas tudo se intensificou nos últimos dois anos. Somaram-se também as atrações para angariar fundos.
“Com a possibilidade de transmissões remotas, se destacaram quais são os elementos mínimos necessários para que, temporariamente, as festas se mantivessem vivas. No caso do Carnaval, algumas escolas fizeram as transmissões reduzindo a alguns elementos expressivos mais adaptáveis ao formato de transmissão como o samba cantado e a presença da bateria com poucos integrantes”, descreve Renata Gonçalves.
João Gustavo de Sousa e Lucas Bártolo registram algumas dessas atividades virtuais bem como ações solidárias de enfrentamento às crises econômica e sanitária articuladas pelas escolas de samba junto as suas comunidades. Na observação dos bumbás de Parintins, Amazonas, Maria Laura Cavalcanti e Ricardo Barbieri registram que as performances virtuais do festival propriamente dito reduziram-se a uma noite e lidaram com irremediáveis ausências como os turistas e o público em geral, a galera – os apaixonados torcedores de cada boi – por um lado, e as alegorias, por outro, foram os principais elementos ausentes.
O livro “A Falta que a Festa Faz” mostra as adaptações em diferentes lugares em festas tradicionais que ocorrem ao longo do ano. A professora Julie Cavignac, por exemplo, estudou a festa religiosa de Sant’Ana, em Caicó, no Rio Grande do Norte, que é muito tradicional. A comunidade local fez adaptações, transmitindo novenas e uma procissão com público reduzido, e passaram a vender quentinhas das comidas tradicionais por delivery. “Mesmo com todas as adaptações, o formato remoto não dá conta do grande número de pessoas envolvidas, além disso, não são todas as pessoas que têm acesso a uma boa conexão de internet, tanto para transmitir com uma boa qualidade quanto para assistir de casa”, observa Renata Gonçalves.
O título do livro foi inspirado em reflexões do professor português João Leal, que integra o projeto. Ele argumenta que as alternativas rituais metonímicas foi uma forma de afirmar que a festa, embora momentaneamente cancelada, continuava viva e voltaria, uma forma de afirmar “a falta que a festa fez (e faz)” ou, se quisermos, uma forma de resistência à falta da festa. Ele avaliou como as festas são importantes para a representação e a circulação de saberes, de pessoas e de elos comunitários, e que as festas indicam arranjos sociais para a sua permanência ou seu fim. Em Portugal, houve um momento de muito isolamento em 2020 e as grandes festas mais institucionalizadas – mesmo não sendo tão numerosas por lá – foram adiadas com a ideia de que, no ano seguinte, seria possível que elas pudessem acontecer. Pela proximidade, com as festas familiares em casa, ou pela amplitude social, o estar com outros – próximos ou distantes – é uma característica geral da festa. Essa proximidade física e festiva foi o que o confinamento cancelou. E esse impedimento de estar junto impactou também no âmbito da casa, com suas memórias, ainda mais num período difícil com grandes perdas de entes queridos. O valioso conjunto ilumina a resiliência desses tantos mundos sociais, ágeis em sua capacidade de se adaptar e, em meio a limites, sofrimentos e perdas, seguir celebrando, à espera da almejada expansão festiva
Saiba mais:
“A Falta que A Festa Faz – celebrações populares e antropologia na pandemia” está disponível no Pantheon da UFRJ. Acesse.
“Fazer festa, gerar alegria e ser lúdico também é muito importante para a sociedade”, Renata Menezes
Você conhece os diferenciais e inspirações do Ludens, o Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado do Museu Nacional/UFRJ? Resumidamente, ele se dedica ao estudo antropológico de formas expressivas, materiais e simbólicas relacionadas a contextos religiosos, artísticos, rituais, festivos, performáticos, museográficos e patrimoniais. A coordenadora Renata Menezes explica que os pesquisadores retomam manifestações que pareciam muito tradicionais para fazer uma releitura na sua dinâmica de reconfiguração atual, por grupos e movimentos sociais.
Uma das inspirações do Ludens é buscar alargar a noção de ritual e trazê-la para pensar o cotidiano, a vida das pessoas na sociedade complexa. Afinal, qual é o lugar da experiência do lúdico, da festa e da alegria? “Ela não é superficial ou acessória, porque é essencial para os grupos humanos terem esse tipo de manifestação. A vida não se organiza somente pelo dinheiro e pelo poder. A economia e as eleições são importantes, mas somos seres humanos totais, então fazer festa, gerar alegria e ser lúdico também é muito importante para a sociedade”, avalia a pesquisadora.
Dinâmica do Ludens
Renata conta que, inicialmente, eles tinham o grupo de pesquisas no CNPq voltado para a antropologia da devoção e que ele ainda existe com alunos de mestrado e doutorado. Com o tempo, resolveram abri-lo para pós-doutores e outros pesquisadores com doutorado, que têm afinidade não só com a temática, mas também com as teorias que usamos e a nossa forma de fazer pesquisa. “Tivemos muitos bolsistas de iniciação científica e temos também bolsistas de apoio técnico. A Faperj é muito importante para o desenvolvimento do nosso Laboratório. Dentro da Antropologia do Museu Nacional, o Ludens está vinculado ao Núcleo de Estudos das Sociedades Complexas, que ancora pesquisadores e laboratórios. E isso amplia o alcance das nossas atividades”, conta.
O diferencial do Ludens está na forma de abordar o tema. Há uma ênfase no método etnográfico para testagem do alcance dos modelos teóricos, fazendo a pesquisa junto com as pessoas. O esforço é colocar o que eles fazem e como pensam o mundo em diálogo com a teoria antropológica. “E conseguimos pela generosidade dos grupos em nos acolher, porque estamos trabalhando com as diferenças, com as perspectivas relativas, assumindo o caráter parcial do que estamos produzindo”, explica Renata Menezes. O conhecimento é contextualizado, a partir das relações estabelecidas com as pessoas junto as quais se pesquisa o grupo. A atuação é mais interpretativa, onde o pesquisador busca se aproximar de uma vida social que é sempre muito mais ampla e diversa do que ele consegue alcançar.
Missão científica
Neste momento, a professora Renata Menezes está em uma missão científica na França, junto à Escola Normal Superior e ao laboratório de estudos da religião do qual ela faz, CéSor, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Ela está discutindo resultados de diferentes pesquisas: museus e patrimônios a partir da experiência do Museu Nacional; materialidades religiosas, com os pesquisadores de religião; está discutindo com um grupo de pesquisadores o Carnaval das escolas de samba; e está estudando com um grupo ligado ao Ministério da Cultura francês o incêndio de Notre Dame, sendo o incêndio do Museu Nacional um dos casos comparados no mundo.
“A comunidade de antropologia francesa tem demonstrado muita preocupação e solidariedade com a reconstrução do Museu Nacional e isso é muito importante. Mesmo com as barreiras do avanço da Ômicron aqui, estou conseguindo apresentar meus trabalhos, estabelecer novas redes de contato com diversos pesquisadores. Alguns integrantes do Ludens já fizeram o ‘doutorado sanduíche’ aqui na França e outros estão por vir. E, entre as minhas próximas intenções, no futuro, em uma próxima vinda, também está localizar mais documentos do Museu Nacional aqui”, relata. Recentemente, ela fez uma apresentação em seminário no Museu de Etnologia de Genebra, na Suíça, sobre a produção de-colonial de coleções antropológicas, falando juntamente com o professor Nuno Porto sobre as coleções gêmeas de Cosme e Damião que estão montando para o MOA – Museu de Antropologia da Universidade da Colúmbia Britânica e para o Museu Nacional. Fez também uma palestra no Instituto Nacional do Patrimônio francês (INP), sobre materializações e desmaterializações do patrimônio brasileiro em contexto crítico. E ainda apresentou no seminário do Grupo de Reflexão sobre o Brasil Contemporâneo a palestra “Fazer antropologia da religião em tempos de pandemia?”.
Alguns projetos recentes
Neste momento, o Ludens também está com a preocupação dos pesquisadores não se contaminarem e não contaminarem os grupos, então os trabalhos de campo estão sendo feito com muito cuidado. A internet tem sido uma alternativa, novas experiências estão sendo ensaiadas:
Livro “Religião e Materialidades — Novos horizontes empíricos e desafios teóricos” — Ele tem um caráter mais acadêmico, e está em pré-venda e com previsão para ser lançado formalmente em abril pela Editora Papéis Selvagens. Renata Menezes é uma das organizadoras com o professor Rodrigo Toniol do IFCS/UFRJ. Trata-se de uma coletânea de vinte artigos acadêmicos, que fala sobre a relação entre religião e objetos, trazendo abordagens de ponta para a antropologia nacional. São abordadas diferentes religiões e conta com autores de diferentes estágios da carreira, sendo uma renovação temática e também intergeracional. Acesse o site e o Instagram @papeisselvagens.
Projeto Motirô e o Museu da Pessoa — O Ludens contribuiu coletando sete depoimentos de mestres da cultura popular para o Museu da Pessoa, contando como eles viveram a pandemia e se esforçaram para celebrar suas festas. Conheça: Motirô — O festejo como testemunho.
Livro “Doces Santos — Devoções a Cosme e Damião” (Série Livros Digitais do Museu Nacional) — Disponível gratuitamente.
Exposição Virtual Doces Santos, a partir de 2020, apresentando os resultados da pesquisa sobre a Devoção a Cosme e Damião financiada pela Faperj, disponível no Instagram. Visitem.
Livro “A Falta que A Festa Faz” (Série Livros Digitais do Museu Nacional) — A professora Renata Menezes e o doutorando do PPGAS/MN Lucas Bártolo também participaram do livro que abre este conteúdo. Disponível gratuitamente.
Saiba mais:
Visite o site do Ludens: https://ludens.museunacional.ufrj.br