
Quem poderia imaginar que a escadaria monumental do Paço de São Cristóvão, sede do Museu Nacional/UFRJ, não existia na época da família real? Descobertas como essa vêm sendo feitas a partir de estudos minuciosos nas alvenarias e em outros vestígios que revelam as camadas de intervenções realizadas ao longo do tempo. Conhecer esses detalhes tem sido essencial para orientar o projeto de restauração interna e garantir o registro técnico para eventuais necessidades nas próximas décadas ou séculos. O Harpia entrevistou a arquiteta Sandra Branco, especialista em restauração de monumentos e patrimônio histórico, que integra a equipe do consórcio formado pela H+F e pelo Atelier de Arquitetura, responsável pela restauração interna do palácio. Confira a seguir:
Harpia — Você é uma arquiteta com sólida trajetória na área de restauração de monumentos e patrimônio histórico, incluindo pós-graduação em restauro pela Universidade de Roma e trabalhos no Palácio Capanema, na Fiocruz, na Sala Cecília Meirelles, no Theatro Municipal do Rio, anos no Iphan, enfim, com diversos trabalhos na área, além de ser professora universitária. Como foi sua entrada no projeto de restauração do Paço de São Cristóvão e, em linhas gerais, quais foram as principais contribuições que você tem trazido para a equipe?

Sandra Branco — Fui convidada pelo consórcio formado pelas empresas H+F e Atelier de Arquitetura ainda na fase do concurso, em 2020. Resumidamente, o Pablo Hereñú me conheceu por meio da arquiteta Fabiana Araújo (do escritório Atelier) com quem trabalhei no projeto de restauração do Reservatório da Carioca e, a partir dessa referência, me chamaram para integrar a equipe. Tudo o que desenvolvemos é em equipe, trabalhando integradamente com todas as equipes envolvidas e o Iphan. Desde o início, trabalhamos com uma perspectiva mais ampla sobre o que envolve um projeto de restauro, sempre destacando que ele não pode ser dissociado do projeto de arquitetura.

Quando se trabalha com um edifício histórico, especialmente em casos complexos como o do Museu Nacional, é essencial compreender as camadas de intervenções realizadas ao longo do tempo. São justamente essas camadas que orientam e sustentam o desenvolvimento do trabalho. Uma restauração não se limita a mapear danos. Embora esse levantamento seja importante, ele não pode ser o ponto de partida. Ao longo da minha trajetória, aprendi que é preciso, antes de tudo, entender profundamente o edifício. Só depois desse entendimento é que se deve iniciar o mapeamento dos danos. Isso é especialmente relevante no Paço de São Cristóvão, que reúne múltiplas camadas históricas sobrepostas. Também é fundamental compreender que restaurar não significa, necessariamente, retornar a um estado original. Muitas vezes, as intervenções feitas ao longo dos anos precisam ser estudadas, interpretadas e integradas ao processo de restauro.

Harpia — Sandra, você trabalhou na restauração de edifícios históricos conhecidos, como o Theatro Municipal do Rio. Para um melhor entendimento de todos, essencialmente, o que diferencia o restauro do Museu Nacional de um restauro como o do Municipal em que você trabalhou, resumidamente?
Sandra Branco — Quando trabalhei no projeto de restauração da fachada do Theatro Municipal, por exemplo, o contexto era completamente diferente. O edifício permanecia praticamente em sua configuração original, e no caso da fachada foi um trabalho essencialmente de consolidação de alguns elementos, limpeza e a recuperação de elementos ornamentais. Já o restauro do Museu Nacional apresenta um grau de complexidade muito maior, principalmente devido aos danos causados pelo incêndio. A maior parte do edifício ficou com as alvenarias expostas, sem revestimentos, restando apenas alguns ornamentos e outros vestígios em seu interior. Nesse cenário, a primeira etapa foi a realização desse levantamento histórico aprofundado, que mencionei, sendo fundamental para compreendermos as diferentes fases estruturais e ocupacionais do palácio ao longo de diferentes períodos. Em paralelo, fizemos um levantamento fotográfico minucioso de todas as paredes internas, do térreo aos três pavimentos superiores. Cada imagem foi organizada em um PDF e posicionada em planta, permitindo localizar com precisão cada parede registrada. Na sequência, elaboramos o levantamento gráfico, um trabalho técnico detalhado em que inserimos todos os elementos visíveis nas alvenarias. Foi um momento muito especial para todas as equipes envolvidas, porque, apesar da tragédia, conseguimos redescobrir o Palácio de São Cristóvão ainda presente nas camadas do edifício. Cada nova descoberta é profundamente emocionante para mim e para todos os profissionais envolvidos.

Harpia — Por que é essencial esse registro minucioso, Sandra?
Sandra Branco — Essa análise é essencial para estabelecer a cronologia do edifício e, com base nisso, decidir o que pode ser resgatado. E sempre com cuidado para não comprometer a compreensão geral do espaço. Como boa parte dessas alvenarias serão novamente revestidas, recebendo argamassa, daqui a 50, 100 anos ou depois, se alguém quiser fazer uma nova leitura do espaço, esse registro será fundamental para as tomadas de decisão. Se houver o desejo de abrir uma porta, por exemplo, saberão onde já existiu e poderão reabrir sem danificar uma alvenaria desnecessariamente. Essa foi, inclusive, uma diretriz deste atual projeto de restauração. Sempre que foram pensadas novas circulações, optamos por reabrir os vãos que já haviam existido, em vez de criar aberturas novas, quando possível.

Harpia — E, de forma geral, como foi decidido o que permaneceria com alvenaria aparente e o que seria revestido?
Sandra Branco — O projeto foi guiado, em grande parte, pelas necessidades do próprio Museu. Nosso papel, como equipe de arquitetura, é também ter um olhar atento à materialidade do edifício, evitando que alvenarias antigas sejam removidas sem necessidade. O uso previsto para os espaços exige normalmente o revestimento das alvenarias, portanto o assunto foi amplamente discutido entre todas as equipes envolvidas, compostas por especialistas em edificações históricas, e a gestão técnica do Projeto Museu Nacional Vive. O Iphan tem sido um parceiro fundamental nesse processo, acompanhando e ponderando cada decisão. Todos os detalhes são pensados de forma cuidadosa e acordados em conjunto. Buscamos equilibrar o que já existia com as demandas contemporâneas de uso e preservação. Algumas definições surgiram a partir de solicitações do próprio Museu Nacional, e outras foram tomadas de acordo com a relevância das descobertas que fizemos ao longo do trabalho. Um exemplo significativo é o antigo pátio, atualmente chamado de Sala das Vigas, que é um espaço que reúne múltiplas temporalidades e elementos construtivos curiosos.
Próximo ao pátio da escadaria, há um vão que, originalmente, deveria ser mais amplo. Nos séculos passados, a proposta era que uma carruagem entrasse onde atualmente é a Sala do Bendegó e saísse pela fachada norte. Esse projeto, no entanto, foi interrompido. A construção chegou a ser iniciada, mas paralisada no meio do caminho, e os pilares de granito acabaram incorporados à alvenaria. É possível ler essas camadas da história diretamente nos vestígios do espaço. Outra curiosidade é a entrada da Sala das Vigas, que, em projeto no século XIX, daria acesso à escada nobre. Ela começou a ser executada com colunas duplas e capitéis ornamentados, sugerindo uma intenção decorativa mais elaborada, mas também foi interrompida. Até hoje é possível ver as lesenas superiores, que comporiam junto à nichos laterais esse espaço de chegada ao andar nobre. Com pé-direito triplo, esse será o novo espaço de recepção do Museu, permitindo ao público a experiência de fazer essa leitura visual dessas camadas temporais. E cada um desses detalhes passa por validação junto ao Iphan.

Harpia — Foram muitas descobertas sobre a arquitetura nessa fase de análise detalhada. Mas o que foi mais inesperado para você?
Sandra Branco — Observamos uma série de detalhes que ainda não se sabia. E é importante enfatizar que o edifício que todos visitavam em 2018 já não correspondia ao palácio original, que era razoavelmente modesto, e já estava incorporado a outra estrutura. Na reconstrução necessária após o incêndio, ao conhecermos o prédio completamente sem revestimentos, conseguimos identificar antigos vãos murados, incluindo janelas circulares fechadas há muito tempo. Um exemplo marcante foi uma parede que, desde o início, fiquei intrigada no Bloco 4, porque ela apresentava um vão alto, murado, difícil de decifrar. Somente após encontrarmos uma imagem aérea antiga, mostrando o telhado da igreja que existia ali anteriormente, compreendi que eram janelas que se abriam para o pátio do chafariz por sobre o telhado da Capela. Hoje, esse espaço possui outra configuração e não é facilmente reconhecível, mas agora sabemos exatamente o que existia ali antes. Também encontramos arcos de descarga, que sabemos que só existem se, no passado, teve algum vão ali, que foi murado.

Harpia — Há poucos registros de imagens antigas do Paço de São Cristóvão. Como vocês contornam essa dificuldade para reconstruir o histórico dessas camadas mais antigas?
Sandra Branco — De fato, temos poucos registros gráficos do palácio, e a maioria é a partir da década de 1850. Da fase inicial, entre 1808 e 1810, por exemplo, ainda não encontramos nada. Por isso, a análise detalhada da documentação histórica, combinada à observação minuciosa das alvenarias e outros vestígios da construção, foi essencial. Isso está nos permitindo conhecer como era o palácio na época de Dom João VI, Dom Pedro I, Dom Pedro II e também na reforma com a República que buscou apagar a imagem do período imperial no prédio, além de leiloar tudo. Ao observarmos as imagens antigas, na Torre Norte, aparece uma cúpula abaulada, que lembra construções bizantinas. Essa cúpula foi demolida no reinado de Pedro II quando se reformulou a Torre Norte. Ele construiu o terceiro pavimento e o observatório particular sobre esse pavimento. Era um observatório astronômico, que existiu até 1910.

Harpia — E a escadaria monumental passou por alguma alteração?
Sandra Branco — Aquela escadaria é da época da República. Ainda não conseguimos identificar a data exata da sua construção, mas sabemos que foi erguida depois da Proclamação, em 1889, e antes de 1910. Sempre percebi que ela não poderia ser do tempo do Império porque o pátio da escadaria é muito bem proporcionado, clássico. E aquela escada, sinceramente, é grande demais para aquele espaço. Ao aprofundar minhas pesquisas, encontrei um documento que confirmava a minha suspeita: ela foi construída posteriormente. As obras realizadas entre 1900 e 1910 foram responsáveis por moldar o volume do edifício como conhecemos hoje. Nesse período, a capela e a torre do relógio foram demolidas, e as fachadas foram homogeneizadas segundo o modelo do bloco frontal do palácio, datado do período de Pedro II.

Harpia — Onde ficava essa torre do relógio?
Sandra Branco — Havia uma torre construída durante o reinado de Pedro II, próxima ao bloco 4, próxima da sala de jantar de gala. Essa torre abrigava um relógio e também um elevador hidráulico, que levava as refeições das cozinhas, localizadas abaixo do térreo, até o andar da sala de jantar, que seria o andar nobre. Esse elevador subia por uma estrutura coberta. Era uma torre muito bonita, mas acabou sendo demolida nas reformas de 1910, por não se adequar à nova linguagem neoclássica adotada para o edifício. Infelizmente, naquele tempo não havia uma preocupação com a preservação do patrimônio. Havia também o desejo de apagar os traços do período imperial. Um exemplo disso é o próprio Palácio de Petrópolis, que foi transformado em escola e os bens do Paço de São Cristóvão, por sua vez, foram todos leiloados. O Jardim Terraço, por exemplo, era originalmente um pátio da guarda. O portão monumental que havia sido doado pelo Duque de Northumberland a Dom João VI, e delimitava o acesso à esse Pátio, hoje está na entrada do BioParque,. Ele foi desmontado durante as obras de 1910 e transferido para o zoológico.

Harpia — Você poderia citar mais outros exemplos que tenham aparecido durante esse processo detalhado de levantamento?
Sandra Branco — Sim. Um exemplo está no bloco fronteiro, na fachada norte. Encontramos alguns vãos embutidos nas paredes, sendo alguns abertos, outros murados, que lembravam elementos medievais. Em um desses dias de observação mais atenta, percebi que um desses vãos escondia uma chaminé interna. Estávamos no térreo. Ao cruzarmos essa informação com a planta de 1864 e com os dados dos achados arqueológicos, identificamos que aquele espaço provavelmente correspondia a uma antiga área de serviço. Como o local será destinado à loja de souvenirs do Museu, o aproveitamento desses vãos como vitrines será perfeito. É um exemplo claro de como uma leitura cuidadosa do edifício permite integrar o passado ao novo uso. Alguns elementos descobertos podem ser incorporados ao projeto, outros não farão sentido no novo contexto. Nem tudo precisa, necessariamente, ser exposto, mas tudo é fundamental para a compreensão do edifício. Mesmo que algo não tenha valor expográfico, sua documentação é essencial para o entendimento histórico da construção.

Toda a equipe trabalha em conjunto e, no dia a dia, tenho uma parceria muito próxima com a arqueóloga Andreia Jundi, com quem troco ideias constantemente sobre quais áreas podem ser abertas em busca de mais vestígios. Essa parte arqueológica é coordenada pelo professor Marcos André Torres de Souza, que analisa junto aos responsáveis a importância de cada achado, e muitos deles têm sido validados pelo Iphan. Na parte interna, por exemplo, a arqueologia identificou a base das colunas do antigo coro da capela, as alvenarias das alcovas de Pedro I e uma série de outros elementos relevantes que demonstram que era um palácio modesto. Esses achados, sempre que possível, serão integrados à museografia. Essas alcovas, por exemplo, ficarão visíveis por meio de piso de vidro, assim como o piso em pedra decorado que conecta o Pátio do Chafariz ao Jardim das Princesas.

Sob o patamar da escadaria também foram encontrados registros históricos, que, embora não tenham grande impacto visual, foram integralmente registrados. Nem sempre vale a pena, ou se pode manter um elemento exposto. Em alguns casos, registrar e proteger é o mais adequado. A arqueologia tem feito um trabalho excepcional, e todas essas descobertas estão sendo incorporadas ao projeto. Tudo isso está incorporado ao projeto e, em alguns casos, ficará visível ao público.

Harpia — Sobre a capela, quando eu visitava o Museu até 2018, não imaginava que ali tivesse uma capela…
Sandra Branco — Já se sabia que ali existia uma capela por meio de estudos anteriores. No início do desenvolvimento do projeto, diante da própria exigência do Iphan para a liberação do espaço da capela, e com base na planta de 1864, foi possível verificar a dimensão do antigo coro que havia junto à fachada. Então o projeto incorporou esse elemento do coro como uma passagem. Foi muito bem incorporado, porque passou a funcionar como uma conexão entre salas expositivas. E, pela própria dimensão, ele também pode receber algum conteúdo expositivo. Isso também permitirá que, ao passar de uma sala para outra, ali em cima, o visitante possa apreender esse espaço, o que é ótimo tanto para a museografia quanto para essa leitura do que foi a antiga capela. Também tínhamos a projeção das colunas que sustentavam esse corpo do coro. A ideia era recriá-las com uma linguagem contemporânea, justamente porque não sabíamos como elas eram originalmente. E agora, com a descoberta das bases dessas colunas pela arqueologia, tudo ficou ainda mais claro. Isso vai ser incorporado ao projeto também. Cada descoberta nessa reconstrução do Museu é um encantamento.

Nós já tínhamos a planta da capela, mas não encontramos as elevações. Por isso, ainda não sabemos como era o forro: se era abobadado, se feito em madeira…. Não sabemos como era a parte superior. Estou ansiosa para chegarmos ao Bloco 4 e verificar se há algum registro na parede, atrás da argamassa, que possa indicar como era esse forro, onde era preso e qual era sua estrutura. Mas alguns elementos em planta já conseguimos identificar, como a abside. Conversamos com a equipe da arqueologia sobre as sacristias laterais, que foram demolidas, mas cujos pisos de granito ainda estão visíveis. A arqueóloga Andrea Jundi em seu trabalho de prospecção encontrou a base da abside. Foi uma emoção! A base da abside e suas fundações estavam ali, sendo um trabalho de alvenaria muito bem executado. Isso será incorporado à museografia e será uma sala expositiva.

Harpia — Sandra, é muito interessante conhecer esses detalhes sobre a história do Paço de São Cristóvão e tenho certeza que os leitores do Harpia também irão adorar. Para concluir, para você, como é trabalhar nesse projeto de reconstrução, ainda mais você que já teve uma experiência de projeto no Museu, no início da sua carreira, quando voltou da sua especialização na Itália?
Sandra Branco — Foram trabalhos em fases diferentes da minha carreira. Participar desse projeto está sendo uma oportunidade, eu diria quase um presente. Estou fazendo o meu melhor, com muita paixão. Está sendo maravilhoso trabalhar com as equipes envolvidas. Fico muito sensibilizada com esse trabalho e continuo disponível para colaborar. Eu me emociono constantemente quando estou lá. Espero que a população, dentro desse novo Museu, consiga ler e apreender todas essas temporalidades, sempre que possível. A oportunidade de ler esse palácio, de interpretá-lo, para mim, isso é algo único.
Entrevista publicada no Harpia Nº 33, junho de 2025.