Minhas lembranças do Museu Nacional vêm da infância. É um espaço que sempre esteve presente na vida da minha família. Meu avô me trazia para visitar as exposições e contava sobre a experiência do pai dele, que participou da Primeira Assembleia Constituinte Republicana do Brasil, no Paço de São Cristóvão. Como estudei em escola pública, também fiz muitas visitas escolares aqui. Eu ficava fascinada com a imensa baleia e apavorada com um gigantesco caranguejo. Lembro também dos passeios com meu pai, especialmente quando vínhamos assistir ao Projeto Aquarius, na Quinta da Boa Vista. Era um lugar onde eu trazia meus filhos, e hoje venho com minha neta, Elisa.
O olhar estratégico sobre como a burocracia se movimenta
Profissionalmente, minha relação direta com o Museu Nacional começou em outubro de 2013, quando fui convidada para ser assessora de políticas públicas da Associação Amigos do Museu Nacional, a SAMN. Percebi que ainda havia tempo para buscar emendas parlamentares, organizei uma comitiva com professores e a Direção do Museu para uma reunião com a bancada do Rio de Janeiro, em Brasília.
Conseguimos aprovar uma emenda no Congresso de 20 milhões de reais para o projeto “Implantação, Instalação e Modernização de Espaços e Equipamentos Culturais – Museu Nacional – No Município do Rio de Janeiro – RJ”. Contudo, a emenda foi contingenciada e não executada. O Ministério do Planejamento alegou que, em 2014, não havia a obrigatoriedade de repassar os recursos das emendas de bancada. Continuamos nossas buscas por recursos, como o projeto do BNDES, assinado pela SAMN em junho de 2018. Participei de todas as reuniões e vistorias para a implementação do projeto no Paço de São Cristóvão, que incluiria ações de prevenção contra incêndio. Integrei a Comissão de Comemoração dos 200 anos do Museu, celebrados em junho de 2018, contribuindo com minha experiência. Infelizmente, antes da liberação dessas verbas, o trágico incêndio aconteceu, abalando profundamente todos nós.
Setembro de 2018
Na noite de 2 de setembro de 2018, eu estava em casa, em Maricá, quando soube do incêndio. Fiquei em choque, tentando falar com as pessoas que estavam no Museu, pedindo para salvarem as múmias, sugerindo que as jogassem pelas janelas. Mas não foi possível. Foi um dos momentos que me senti mais impotente diante de tamanha perda. Passei meses atravessando a passarela do metrô de São Cristóvão até o Museu, com as pernas tremendo quando eu avistava a fachada manchada com as cinzas. Era inevitável me lembrar de todos os itens que havia listado e fotografado durante as vistorias para o projeto que teria evitado tudo isso, se tivesse sido implementado a tempo com as verbas que poderiam ter sido liberadas naquela época para o Museu. Mas agora é olhar para frente.
Início da reconstrução
Apesar de tudo isso, já no dia seguinte começamos a reorganizar os planos para a reconstrução. Fiquei pesquisando quais emendas parlamentares poderiam ajudar, buscando licenças necessárias, fazendo contatos, entre tantos detalhes para contribuir com as conquistas atuais, fruto dos conhecimentos e esforços de diferentes pessoas. Trabalhamos muito e ainda há muito trabalho pela frente. Há licenças de obras que usamos hoje e que eu já tinha buscado em 2017 para a revitalização que a gente buscava.
Passamos por muitos desafios. Além do incêndio e da pandemia, tivemos o período pavoroso político, em que parecia que estávamos gritando no alto de uma montanha, mas sem eco, sem retorno, uma loucura. O professor Alexander Kellner até costuma brincar que agora é possível irmos à Brasília e esperar com um cafezinho. E posso dizer que agora temos sido recebidos com cafezinho quente e com interesse dos políticos em nos receber, nos ouvir e nos apoiar. Gostaria que isso ficasse em pelo menos três idas ao ano, pegando os diferentes ciclos. Foi importante o espaço este ano na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados para debater a situação do Museu Nacional, incluindo a necessidade de medidas de apoio de patrocínio. Este ano a professora Mariângela Menezes, presidente da SAMN, foi comigo conversar com diferentes pessoas chave em Brasília.
Outra conquista recente deste ano foi a licença dos bombeiros e o habite-se para o Centro de Exposições, permitindo a abertura para visitas escolares com a exposição “Um Museu de Descobertas”.
Estação Biológica de Santa Lúcia
Apesar de trabalhar com burocracia, meu objetivo sempre foi algo maior, voltado para o coletivo. Um exemplo é minha ligação com a Estação Biológica de Santa Lúcia, no Espírito Santo, que poucos no Museu Nacional conhecem. Em 2017, enquanto eu realizava pesquisas no acervo da Seção de Museologia (SEMU) para a exposição sobre os 80 anos da SAMN, analisei documentos que envolviam o Augusto Ruschi e a doação das terras e percebi alguns detalhes que faltavam ser regulamentados. Fui atrás para realizar tramitações para a isenção de impostos e sugeri a categorização da Estação no Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Eu conhecia o que fazer em detalhes, porque já tinha experiência de mais de 20 anos com política pública, inclusive trabalhando com o Fernando Gabeira em Brasília, contribuindo na criação de projetos de lei relacionados com isso.
Visitar a Estação Biológica de Santa Lúcia foi incrível e me fez refletir sobre o contraste entre a biodiversidade do Brasil e a experiência que tive estudando Ciências Biológicas na Universidade de Paris 7. Lá, os trabalhos de campo eram concluídos em poucas horas. Aqui isso é impensável. O impacto que tive ao chegar na Estação, me fez lembrar do trecho que Darwin descreve sua surpresa com a riqueza de formas e cores quando descreve sua passagem pelo Rio de Janeiro. É bem impressionante o que o Augusto Ruschi fez ao criar essa área e outras no entorno, porque ele “vedou” a destruição, protegendo toda a riqueza que tem ali na EBSL e no que ele conseguiu também nos arredores. Ele era um homem à frente do seu tempo, não à toa é o patrono da Ecologia no Brasil. Li nos seus diários e relatos que ele acreditava que o código florestal não seria suficiente para preservara biodiversidade do Brasil. E sabemos que ele estava certo. Hoje, o contraste na região é nítido.
A família de Kika
Sou filha do João Saldanha e da Ruth Viotti (Sim, tenho o mesmo nome da minha mãe!). Tenho cinco filhos: Ana Olívia, Pepe, Pilar, Oceanne e Roman, como o Roman Polanski e não a fruta, e sou avó da Elisa, que atualmente tem 8 anos.
Desde cedo, quando eu tinha apenas 14 anos, meu pai me deixou responsável por assinar tudo para ele, de cheques até contratos importantes com a TV Globo. Ele adorava casar e eu tinha um caderno com todos os prestadores de serviços para ajudá-lo a montar novas casas.
Já a minha mãe era uma feminista e sentia muito orgulho de nunca ter se casado. Foi uma mulher à frente do seu tempo. Ela percebeu o talento do meu pai para ser comentarista de futebol e o introduziu na Rádio Guanabara, pedindo para meu tio Rui Viotti testá-lo como comentarista. E ele foi e ficou. Meu pai foi cronista esportivo e treinador reconhecido, militante do Partido Comunista Brasileiro, sendo apelidado por Nelson Rodrigues como “João Sem-Medo”. Ele resguardava seus quatro filhos dos achaques da ditadura. Também me testava muito, o tempo todo e dizia: “Se a gente jogar a Kika no deserto, ela vira sheik”.
Como técnico, conquistou o título carioca de 1957 com o Botafogo e classificou a Seleção Brasileira para a Copa de 1970. Nas comemorações dos meus 15 anos, escolhi fazer uma noite de comemoração com ele, pedi para irmos à Mangueira ficamos até o amanhecer. Foi demais a bateria tocando parabéns para mim. Minha mãe também adorava Carnaval e tínhamos um bloco. Foram pessoas impressionantes, com princípios e valores que trago comigo.
O Museu vai bem além das exposições
Trabalhar no Museu Nacional é extremamente gratificante, porque envolve um propósito coletivo, algo que beneficia a todos… Percebo que muitas pessoas ainda veem o Museu Nacional apenas como um local de exposições, sem perceber sua grandiosidade, sua relevância nas ciências, educação e cultura, que se retroalimentam. Estamos em um espaço de imenso valor para o Brasil, onde estão preservadas coletas importantes, como as de Bertha Lutz, assim como de tantos outros nomes. Espero que o valor histórico do Paço de São Cristóvão seja mais conhecido e reconhecido, sendo destacado nas futuras exposições.
Ainda temos muito trabalho pela frente, mas a cada passo, mesmo que singelo, avançamos para a reabertura!
Um abraço,
Ruth Viotti Saldanha
Assessora de políticas públicas na Associação Amigos do Museu Nacional (SAMN).
Relato do Harpia Nº 30, outubro de 2024.