Não era um convento, não era uma escola religiosa e também não chegava a ser um presídio. Você já ouviu falar em casas de recolhimento? Esse é o tema do “Projeto Espaço, Gênero e Controle Social: o Recolhimento Feminino de Santa Tereza de Itaipu, Niterói-RJ (1764-1833)”. Ele acaba de ser iniciado pela mestranda Lucia Zanatta Brito, do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional/UFRJ (PPGArq), com a orientação do professor Marcos André Torres de Souza.
No local, hoje funciona o Museu de Arqueologia de Itaipu (MAI), com os remanescentes do Recolhimento de Santa Tereza de Itaipu. É a primeira vez que está sendo feito um trabalho arqueológico sistemático no local. Até o momento, são raros os estudos históricos sobre casas de recolhimento. “Eu ainda não conhecia as casas de recolhimento, ao ler, eu me encantei com esse tema porque trabalho com arqueologia histórica e nunca tinha ouvido falar. Então, o MAI nos deu a oportunidade dessa pesquisa, e surgiu a vontade de pesquisar sobre esse lugar onde as mulheres ficavam isoladas da sociedade”, relata Lucia.
Na Praça XV, tinha o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto e, também no Centro, a Santa Casa de Misericórdia, que servia como recolhimento de órfãs. “Já o Recolhimento de Santa Tereza de Itaipu é muito afastado, prezando por esse isolamento por completo das mulheres. Na época, era uma região de areal, distante, tendo somente duas rotas de chegada. Uma era por São João de Cahiry, onde as pessoas levavam dias indo de carroça. Ou pegavam um barquinho do Centro do Rio até lá. Então, essas mulheres não somente estavam presas como também isoladas de qualquer questão social”, avalia a mestranda.
Ela explica que os responsáveis masculinos costumavam deixar nessas casas de recolhimento suas filhas ou esposas por alguns motivos. Entre eles: punição, quando elas não estavam agindo como a moral e a ética cristã pregavam; por educação, onde elas aprendiam a ler, escrever e recebiam ensinamentos religiosos; e também por fazer votos simples com a vida reclusa, mas sem os votos perpétuos dos conventos. “Eram casas leigas, mas, ao mesmo tempo que elas não tinham uma ligação oficial, elas seguiam os preceitos da religião católica”, explica Lucia.
Os pesquisadores observaram que existem relatos em documentos mostrando algumas mulheres que fugiram de lá e depois voltaram. “Vale também perceber que o local era voltado para mulheres, em sua maioria branca e que suas famílias tinham posses, porque era necessário pagar uma taxa para mantê-las no recolhimento. Ele funcionava a partir das doações desses responsáveis masculinos, que colocavam as mulheres lá”, explica Lucia Brito.
Justificativas passadas ainda presentes
A mestranda considera importante se fazer um paralelo entre o passado e o presente da arqueologia de gênero e feminista. “É bizarro ler as justificativas de levar as mulheres para esses lugares no século XVIII e, nos dias atuais, a gente se deparar com essas mesmas justificativas sobre como as mulheres devem ser e agir”. E completa: “Ainda se ouve na nossa sociedade que as mulheres não deveriam usar determinadas roupas, não poderiam tomar determinadas iniciativas, porque é o homem que tem que decidir. Ainda há um cuidado para que a sociedade não julgue e elas não fiquem ‘mal faladas’. A falta de trabalhos que tratem disso é perigosa, porque se não é falado, ninguém vai perceber. E, se ninguém perceber, não é possível mudar. Esses valores limitam muito nós mulheres dentro da nossa sociedade. Como arqueólogos, somos agentes dessa transformação social, entregando novas perspectivas”.
Você já conhecia a existência dessas casas de recolhimento?
A partir das informações disponíveis atualmente, os pesquisadores informam que existiram 18 casas de recolhimento entre o Nordeste e o Sudeste do Brasil. Elas tinham diferentes destinos: para serem conventos no futuro, outras com intuito mais educativo, de acordo com a moral e ética da época para as mulheres aprenderem a cuidar dos futuros filhos. E também podendo ser uma casa de punição para elas ficarem isoladas temporariamente ou não. A pesquisadora Lucia Brito destaca que o Convento das Carmelitas, no bairro de Santa Teresa, no Rio, começou como um recolhimento. Nessa época, estavam proibidos os conventos porque a sociedade queria que as mulheres brancas ficassem disponíveis para casar. E a Madre Jacinta de Jesus desejava viver uma vida religiosa reclusa e lutou até o fim da vida para conseguir viver no Primeiro Convento Carmelita do Rio de Janeiro. A abertura dessas casas de recolhimento foi iniciada na idade moderna e, em meados do século XIX, elas pararam de existir. Algumas foram transformadas em conventos e outras em escolas para mulheres.
Início do projeto de pesquisa
Nessa pesquisa, será analisada a paisagem social e seus significados. E também como foi o funcionamento dessa casa de recolhimento, a partir da teoria de gênero ligada ao feminismo, e da teoria da paisagem para analisar os remanescentes e os significados deles. “Será problematizada a questão dos recolhimentos. É importante a gente olhar para esses lugares do passado, olhar para essa materialidade, e pesquisá-la, buscando entender esse patriarcado exposto e marcado para essa instituição. Ela deixou raízes nos dias atuais no medo, na coerção e no silenciamento feminino”, ressalta Lucia. Agora estão sendo iniciadas as sondagens arqueológicas. A ideia é buscar identificar a estrutura da antiga edificação, se existe algum vestígio, se existia a ideia de fugir do cárcere e se elas tinham mecanismos para burlar esse controle social das casas de recolhimento. A maior parte dos documentos está em arquivos da polícia e da Arquidiocese de Niterói, por conta da ligação forte com a Igreja Católica. “Há poucas informações, porque, ao silenciar e invisibilizar, se perpetua essa violência contra a mulher, que a gente ainda tem na sociedade. Ao escondê-la, não se tem acesso a esse controle social sobre as mulheres”, finaliza Lucia Brito.
Saiba mais:
- Conheça o Laboratório de Arqueologia Histórica do Museu Nacional/UFRJ, com esse e outros projetos de pesquisa em andamento. Acesse.
- MAI – Museu de Arqueologia de Itaipu – É um museu de arqueologia pré-histórica da região, incluindo a apresentação de sambaquis. Essa nova pesquisa irá trazer novos temas para esse museu, se aproximando mais da população. Conheça.