O que é necessário para transformar o mundo? Em uma entrevista exclusiva concedida ao boletim “Harpia”, a diretora da UNESCO no Brasil, Marlova Jovchelovitch Noleto, compartilha suas experiências, desafios e reflexões sobre esse e outros temas relacionados. Ela ressalta a importância do grupo de pessoas conscientes e engajadas com a nossa reconstrução e a inovação da arquitetura interinstitucional do Projeto Museu Nacional Vive. Conheça a trajetória dessa líder visionária e inspire-se.
Harpia — Sra. Marlova, para começar, nos conte: quando a senhora começou a fazer parte da UNESCO?
Marlova Noleto — Eu comecei minha carreira no sistema ONU em 1997, no UNICEF, o Fundo das Nações Unidas para a Infância. Depois, no final de 1999, eu vim para a UNESCO, que é a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Eu tenho a noção exata do tamanho do privilégio que é servir e ser a líder desta Organização aqui no Brasil, que tem uma equipe fantástica e muito comprometida. Acredito que os temas do nosso mandato são fascinantes e nos permitem dar uma contribuição expressiva para transformar o mundo em um lugar melhor para todos. Sempre que alguém me pergunta como eu vejo o cenário de desigualdades e como penso que o mundo pode ser transformado, eu sempre digo: a receita é por meio da educação! Ela é a única maneira de romper o círculo transgeracional da pobreza, a fim de empoderar as pessoas, criar oportunidades e transformar vidas. São muitos os momentos desafiadores, mas também muito gratificantes que tive na UNESCO ao longo dos anos. Neste fantástico mandato, tivemos ações significativas nas áreas de educação, ciências — que abrangem não apenas as ciências exatas e as ciências naturais, que nos levam aos domínios do programa hidrológico, das mudanças climáticas, do meio ambiente, e das relações entre o ser humano e a biosfera, por exemplo, mas também as ciências humanas e sociais, com todo o campo de desenvolvimento social, direitos humanos, combate ao racismo, esporte e ética —, comunicação e informação, e cultura.
Harpia — Ao longo desses anos, quais são as três iniciativas mais desafiadoras de que a senhora participou na UNESCO e que trazem satisfação pessoal, por ter contribuído ou estar contribuindo?
Marlova Noleto — Um momento muito importante foi quando começamos, nos anos 2000, a trabalhar com o Programa Escola Aberta, uma estratégia de abertura das escolas públicas nos finais de semana com ações de arte, esporte, cultura e lazer. Eu realizei a coordenação desde o início e, em 2004, no primeiro mandato do presidente Lula, esse Programa se tornou uma política pública do Ministério da Educação (MEC), o que é uma grande alegria para mim.
Outro grande momento do trabalho da UNESCO no Brasil foi o início da parceria, que continua até hoje, com a TV Globo no Programa Criança Esperança. Ele é o programa de maior mobilização social de todo o mundo, reconhecido pela própria ONU. Sua arquitetura institucional é interessantíssima, envolvendo uma empresa de comunicação, um organismo internacional como a UNESCO e a participação de toda sociedade brasileira, que generosamente faz suas doações — também, claro, contamos com as doações do empresariado. Além de nos permitir apoiar programas sociais em todo o Brasil, com o Criança Esperança temos a fantástica possibilidade de realizar advocacy — que podemos traduzir como a defesa de uma causa ou direitos — e despertar cada vez mais a consciência da população com relação a temas importantíssimos como, por exemplo: o direito à educação, o direito à cultura, os direitos humanos e o combate ao racismo. É a oportunidade que temos de chegar à audiência diária da TV Globo para tratar desses temas, sendo muito gratificante e fascinante para nós da UNESCO.
Harpia — E qual é o terceiro momento que a senhora destaca?
Marlova Noleto — O terceiro ocorreu no ano passado, com a entrega da primeira etapa da obra do Paço de São Cristóvão, sede das exposições do Museu Nacional, com a fachada principal completamente restaurada. Foi muito lindo, um momento em que me emocionei, porque é um museu emblemático, que conta um pouco a história do passado imperial brasileiro, quando já se valorizava a ciência. Por outro lado, é também um museu que projeta o futuro, porque é um museu universitário, vinculado à UFRJ. A reconstrução do Museu Nacional está sendo um momento muito positivo e importante, que nos gratifica muito.
Harpia — E como foi para a senhora tomar conhecimento do fatídico incêndio que atingiu o Museu Nacional/UFRJ em setembro de 2018? Poderia nos relatar, resumidamente?
Marlova Noleto — Quando soube do incêndio, eu estava em Paris, participando de um fórum de parceiros da UNESCO, inclusive com o ministro da Educação naquela ocasião, Rossieli Soares da Silva. É claro que eu, a nossa diretora-geral, Audrey Azoulay, todos nós ficamos chocados, tristes e preocupados, porque quando um museu é atingido por um incêndio, perde-se uma parte da história. Os museus são um guarda-tesouros, são territórios sagrados de conexão entre o passado, o presente e o futuro. Olhar para o passado é também uma forma de conhecer o que nos antecedeu e, dessa maneira, ter mecanismos que nos permitem aprimorar e influenciar o nosso presente, para que nossos conhecimentos e habilidades técnicas possam alimentar o futuro, as novas gerações. É evidente que, quando vemos a tristeza que é um museu tomado pelo fogo, nós não apenas nos entristecemos, mas ficamos pensando de que maneira poderemos trabalhar para, juntos, reconstruí-lo e trazê-lo de volta à visitação do público, na sua melhor forma. Nós estamos falando de memória, que nos ajuda a disseminar os conhecimentos, os valores e a história de uma época. No caso do Museu Nacional, foram perdidos valiosos acervos expositivos e coleções científicas, que eram objetos de pesquisa de especialistas, professores e estudantes dos cursos de pós-graduação. Além de recompor o acervo, nós também pensamos em como reconstruir o palácio histórico, levando em conta suas peculiaridades arquitetônicas.
Harpia — E, Sra. Marlova, quais foram as primeiras providências da UNESCO no Brasil para apoiar esse momento de reconstrução do Museu?
Marlova Noleto — Nós oferecemos, imediatamente, a visita de uma missão de emergência da UNESCO. Já na primeira quinzena de setembro de 2018, nossos colegas chegaram ao Rio, liderados por Cristina Menegazzi, que trabalhou na reconstrução de Palmira, como responsável pelo Programa de Salvaguarda de Emergência do Patrimônio Cultural Sírio. Na equipe estava também o brasileiro José Luiz Pedersoli Júnior, do Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens Culturais (ICCROM), sediado em Roma. Tivemos o apoio também do governo da Alemanha, que mandou uma equipe que cuidou do incêndio ocorrido nos arquivos de Colônia. Então, assim que voltei ao Brasil, eu convoquei uma reunião com todo o corpo diplomático para que seus membros pudessem estar conosco e nos apoiar – tivemos uma atenção fantástica e continuamos com esse apoio extraordinário. Eles têm nos ajudado na recomposição do acervo, incluindo empréstimos. Não podemos esquecer que o Museu Nacional se distingue um pouco dos demais por ser um museu de história natural e antropologia, tendo uma área de pesquisa e educação científica de excelência. Dessa forma, o Museu Nacional é emblemático, simbólico e importantíssimo, não somente pelo local onde está instalado, mas por sua missão. Já nesse início do processo começamos a ser procurados, com a UFRJ, a UNESCO e a Associação de Amigos do Museu Nacional formando um grupo de parceiros para a reconstrução e, assim, criamos o Projeto Museu Nacional Vive. E, claro, não podemos falar do Museu Nacional sem mencionar a fantástica liderança de seu diretor, Alexander Kellner, que é uma figura apaixonada pelo Museu, que se dedica noite e dia a ele. Eu sempre gosto de dizer que não há nenhuma história humana sem que muitas mãos amigas se unam na mesma direção. E o caso do Projeto Museu Nacional Vive é exatamente esse. Imediatamente, o Hugo Barreto, do Instituto Cultural Vale, também se somou a nós, sendo a Vale esse parceiro gigante que está conosco desde o início. E o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) continuou envolvido, porque já havia um contrato assinado em junho de 2018 para a revitalização do Museu, que foi adequado para sua reconstrução. Toda a equipe técnica envolvida é fantástica, e eu também sempre gosto de lembrar dos colaboradores anônimos, porque são os que colocam pedra sobre pedra, sendo igualmente importantes. Assim, cada um tem uma parcela de responsabilidade pelo sucesso dessa reconstrução.
Harpia — A UNESCO participa de outra estrutura de governança ou coordenação similar de projeto no Brasil?
Marlova Noleto — Não participamos. A arquitetura interinstitucional que se criou para a reconstrução do Museu Nacional é absolutamente inovadora, envolvendo o Museu, a Universidade, um organismo internacional como a UNESCO, os parceiros do setor privado e a sociedade civil, com a Associação de Amigos. Essa estrutura de parceria, com a integração de diferentes atores, é importante para esse sucesso que estamos obtendo, sendo inclusive uma recomendação de 2015 da UNESCO, referente à proteção e à promoção dos museus, suas coleções, sua diversidade e seu papel na sociedade. Essa experiência vai inspirar outras semelhantes, porque ela é muito inovadora. Nós temos um Comitê Gestor e um Comitê Técnico, em articulação interinstitucional e sempre atuando em conjunto. Isso é algo que merece um grande destaque.
Harpia — Hoje, como a senhora se sente fazendo parte desta reconstrução, por meio do Projeto Museu Nacional Vive? O que a senhora traz para a sua vida a partir dessa experiência?
Marlova Noleto — Eu me sinto emocionada e privilegiada por estar participando desta reconstrução. Eu sempre me pergunto sobre o tempo que nos toca viver na história, porque não podemos esquecer que a história é um minuto e é um milênio. Então, a gente deve se ver nessa dimensão do tempo e pensar: “O que coube a mim durante a minha vida?”. Acredito que a felicidade é um conceito coletivo, porque é muito difícil ser feliz sozinho. Por isso, desde a escolha da minha profissão — porque sou assistente social de formação e, depois, me dediquei a outros estudos, sempre me aprofundando em políticas públicas —, eu busco entender de que maneira posso dar a minha contribuição para um mundo melhor e mais inclusivo para todos. Então, participar da reconstrução do Museu Nacional é um presente para mim. Eu me sinto feliz porque vejo que o nosso Escritório de Representação da UNESCO aqui no Brasil está tendo um papel muito importante de liderança na reconstrução do Museu Nacional, e é isso que a sociedade brasileira pode esperar da nossa Organização, sempre. Nós somos comprometidos com a Agenda 2030, que fala em desenvolvimento sustentável e não deixar ninguém para trás, com a ideia geral de que devemos ser o mais inclusivos possível — e a UNESCO é a agência líder do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável sobre educação (ODS 4). Então, participar da reconstrução do Museu Nacional é uma oportunidade maravilhosa para toda equipe da UNESCO, e eu não falo só em meu nome.
Harpia — A senhora poderia nos citar museus de história natural e antropologia que já visitou pelo mundo e como eles te tocaram?
Marlova Noleto — Eu me lembro que, quando visitei o Museu Britânico pela primeira vez, fiquei muito impactada. Meus pais sempre estimularam essas visitas, me levando para conhecer museus desde que eu era muito pequena. Não só no Brasil, mas também no exterior, sempre com a ideia de que os museus nos contam a história da humanidade de muitas maneiras diferentes. Eu me lembro também da visita ao Smithsonian, nos Estados Unidos, com aquele conjunto de museus. Gosto muito do Museu D’Orsay e do Louvre, em Paris. E também do Yad Vashem, em Jerusalém, um museu de memória sensível, que conta a tragédia do Holocausto. Recentemente, conheci o Hermitage, em São Petersburgo, na Rússia, que era o sonho da minha vida. Eu estive lá em 2019 e vi o apogeu do que foi o Império Russo, que também tem a ver com as minhas origens de família. Então, a partir desta sensação que temos quando adentramos esse espaço — que, de alguma maneira, também é um território sagrado, assim como as escolas —, também cabe a nós explorarmos de que maneira podemos fazer com que o espaço dos museus seja aberto e esteja acessível para o maior número de pessoas. Em relação aos Museus de História Natural, eu gosto particularmente do de Nova York e do de Londres, dois museus singulares, com coleções impressionantes. No de Nova York, gosto muito do Planetário anexo e de toda a parte ligada à ciência planetária, a sala dos meteoritos e da origem do Sistema Solar. Enfim, cada museu “conversa” conosco de uma maneira diferente, e eu sempre gosto de me deixar levar pelos sentidos ao entrar em um museu pela primeira vez.
Harpia — Para finalizar, que mensagem a senhora gostaria de deixar para o corpo social do Museu Nacional/UFRJ?
Marlova Noleto — A mensagem que eu vou deixar é baseada na frase de Margaret Mead, uma antropóloga que viveu entre 1901 e 1978, e que me inspira muito. Ela disse: “Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, foi sempre assim que o mundo mudou”. Que todos vocês, que estão engajados para que o Museu Nacional continue vivo e possa voltar a estar aberto para a sociedade brasileira, continuem fazendo sua parte, sempre comprometidos em ajudar e aperfeiçoar o mundo para que ele se torne mais inclusivo, mais justo e mais humano para todos. Margaret foi uma mulher à frente do seu tempo, tendo realizado o doutorado antes até do meu pai ter nascido, e que conquistou espaços que eram difíceis para as mulheres naquela época. Hoje, mesmo quando nós, mulheres, temos posições de grande destaque e de grande liderança, ainda sempre aparece um homem que nos interrompe, que nos desrespeita, que acha que o nosso lugar natural não é ali. E é curioso porque, às vezes, alguns pensam: “Ah, será que acontece?”. Sim, todos os dias acontece o famoso mansplaining. Dessa forma, sempre procurei pensar em quem são as mulheres que me inspiram e ler sobre a história delas, porque para as mulheres sempre é mais difícil. Eu também me inspiro muito na minha avó materna, que saiu sozinha da Europa e veio para o Brasil fugindo dos horrores da guerra, da perseguição aos judeus, com apenas 20 anos e nunca mais encontrou a família. É muita coragem, não é? Então, também temos que honrar o legado dessas mulheres corajosas que nos antecederam e prepararam o caminho para nós.