Eu entrei no Museu Nacional/UFRJ, em 1976, como estagiária no laboratório dedicado ao estudo dos dípteros, que são insetos de duas asas, como as moscas e os mosquitos. E é onde estou até hoje. Ao longo do tempo, realizei pós-doutorados e estágios seniores no exterior, que foram períodos de aprofundamento acadêmico e intercâmbio científico, que contribuíram, significativamente, para minha formação e produção científica. Uma dessas experiências foi na Academia de Ciências da Califórnia, em São Francisco, nos EUA, onde tive a oportunidade de estudar um material recém-coletado em Madagascar durante um projeto sobre o levantamento da fauna local.
Um dia, ao trabalhar com esse material, percebi algo espetado no olho de uma mosca, e não era qualquer coisa, era uma estrutura definida, o suficiente para despertar minha curiosidade. Quando percebi que era um ovo de outro díptero, fiquei tão empolgada, que quase virei a noite no laboratório. Peguei todas as gavetas que eu já tinha estudado e voltei para analisar cada exemplar, um por um, encontrando vários com ovos espetados em diferentes partes do corpo. Nossa! Fiquei ainda mais curiosa! Depois de muito estudo e leitura, finalmente entendi o significado daquilo. Não sei se vocês sabem, mas em Madagascar é comum a formiga-de-correição. Elas formam uma espécie de esteira, se deslocando bem rápido no solo, com milhares de indivíduos. Todos os insetos que estão por ali saem voando imediatamente. E tem um díptero que se chama Stylogaster, cuja fêmea se aproveita dessa situação, dobrando seu abdômen para lançar seus ovos nesses insetos que voam para escapar das formigas. Esses ovos, chamados de “ovos-dardo”, ficam espetados no corpo de vários insetos, como os dípteros, que vão atuar na dispersão dos mesmos. É um comportamento muito interessante. Só essa experiência rendeu a descoberta de vários novos carreadores de ovos, além de 23 novas espécies de moscas!

Geralmente, as pessoas associam as moscas a algo negativo, como sujeira e doenças. Mas não é nada disso! Esses insetos desempenham papéis fundamentais na natureza, atuando, por exemplo, como importantes agentes decompositores, contribuem para o controle de pragas, servem como alimento para diversas espécies, entre tantos outros. Além disso, são importantes polinizadores, como os membros da família Syrphidae, que é composta inteiramente por visitantes florais. Pouca gente sabe, mas o polinizador do cacau também é um pequeno díptero, um mosquitinho, chamado Forcipomyia. E, afinal, quem não aprecia um bom chocolate, tão presente no nosso dia a dia! Ademais, algumas espécies de moscas realizam a polinização de flores localizadas em altitudes elevadas, onde a diversidade de abelhas é baixa.

Nossas pesquisas envolvem também a entomologia forense, que trata dos insetos utilizados para auxiliar na investigação de crimes envolvendo morte violenta e que parece com as descobertas investigativas de uma série de televisão. Minha grande parceira para orientar as pesquisas nessa área é a especialista Janyra Costa, que é homônima da professora que tivemos aqui no Museu. Um de nossos alunos, que era perito criminal e que tinha acesso a cadáveres humanos, desenvolveu um trabalho pioneiro no Brasil na investigação de casos de crimes sexuais, com resultados muito expressivos! Pelo sêmen encontrado no estômago das larvas das moscas que se alimentam do cadáver, foi possível aproximar-se do perfil genético do possível agressor. Foi um trabalho muito sensível, e de grande importância para o avanço na resolução de crimes sexuais.

Penny e Monty Wood
Desenvolvemos também alguns estudos um pouco singulares. Aconteceu uma investigação muito interessante de uma múmia que foi desenterrada em Portugal. Encontraram alguns dípteros no esôfago dela e nós investigamos quais eram as espécies. O curioso é que a identificação das espécies que colonizaram o corpo, ajudou nos esclarecimentos das investigações, revelando que o corpo foi mantido primeiro em um lugar fechado, quente e seco, por muitos meses e que depois foi movido para outro lugar, fato que pode camuflar as investigações. Então, são esses detalhes que tornam o trabalho fascinante, sendo descobertas que muita gente nem imagina que a entomologia pode revelar.

Avanços pela internacionalização

Além da experiência na Academia de Ciências da Califórnia, tive outras experiências em museus de história natural e instituições científicas renomadas em Londres, Paris e Berlim, por exemplo. Também tive uma oportunidade interessante na África do Sul, quando fui convidada para contribuir na realização de um manual sobre dípteros africanos. Estar lá nas instituições parceiras, em contato direto com o material, foi fundamental para o avanço das pesquisas e para o conhecimento das espécies estudadas.

Conservation of Natural History Collections – International Symposium, 1992, Madrid.
A primeira vez que fui levar o nome do Museu Nacional para o exterior eu ainda era bem jovem, acho que ainda era estagiária. Foi em um congresso de entomologia na Itália e eu estava bem nervosa, indo com a cara e com a coragem, para apresentar meu trabalho. Ao mesmo tempo, tive todo o fascínio de encontrar aquelas pessoas que eram autoras dos livros, dos artigos, das referências que eu estudava. Lembro que foi muito emocionante e isso ficou marcado.

Com David Henshaw, chair do Congresso internacional de Dipterologia, Oxford, Reino Unido, 1998
Depois, eu fiquei muito frequente nos congressos, especialmente nos especializados em Diptera. São momentos valiosos para interagir com as pessoas da área e estabelecer parcerias.

‘Um Museu de peso’
Cheguei ao Museu Nacional pelo entusiasmo contagiante das aulas da professora Janira Martins Costa, durante minha graduação na Gama Filho! Fui monitora dela e a gente ia para a Praia da Urca coletar animais marinhos para as aulas práticas de zoologia. Nas nossas conversas, ela comentava que estudava insetos no Museu e eu sonhava em ser exatamente como ela. Afinal, alguém que trabalhava com tanta paixão só podia estar em um lugar muito especial. Aquilo ficou marcado em mim.
Um dia, vi um cartaz, na Gama Filho, do professor Dalcy de Oliveira Albuquerque oferecendo estágio no Laboratório de Diptera-Muscidae do Museu Nacional. Fui correndo me inscrever e nunca mais saí daqui. Isso foi em 1976, então, no próximo ano, eu completo 50 anos no Museu. Tanto a professora Janira quanto a professora Rosalis Rodrigues Guahyba foram professoras muito inspiradoras e a energia delas me despertou para essa área. Também fui monitora da Rosalis na Faculdade Maria Thereza, em Niterói, onde também dei aulas no início da carreira.

Nos primeiros contatos, eu achava o professor Dalcy muito sério, mas a cara fechada dele não durou muito tempo e a gente logo conheceu o outro lado dele, que era uma pessoa muito brincalhona. Era um excelente educador, que estimulava os estudantes para ler de tudo, promovia debates e estimulava nossa produção científica e a participação em vários projetos. Além disso, foi um educador de vida! Conversava com a gente e sabia da vida de cada um. Ficávamos no Prédio Anexo Alípio de Miranda Ribeiro, de onde só saí bem recentemente.
E cheguei num tempo de Museu “de peso” com grandes nomes como José Cândido, Newton Santos, Castro Faria, Leda Dau, Miguel Monné, Candinho, Macedo, entre muitos outros. Acompanhei, ao longo desses anos, as sucessivas renovações de gerações, sempre com pesquisadores de destaque em suas áreas até chegar as gerações atuais, mantendo-se sempre a excelência e o pioneirismo nas pesquisas em história natural e antropologia.

O professor Dalcy foi meu orientador também no mestrado, realizado aqui no Museu. Defendi minha dissertação em 1983, sobre um gênero de Muscidae chamado Philornis. Eu mergulhei profundamente nesse trabalho que associava a biologia dessas moscas com as aves. Eram mais ou menos 50 espécies do gênero, sendo algumas larvas coprófagas, se alimentando de fezes das aves, algumas de vida livre se alimentando de sangue e havia ainda larvas subcutâneas. Apesar dessa variação, todas apresentavam algum tipo de relação com ninhos de aves, afetando principalmente os filhotes, que, por conta da infestação das larvas ficavam bastante debilitados e lesionados. Depois fiz vários outros estudos com o mesmo gênero, mas esse primeiro trabalho foi bem marcante, por associar a integração de conhecimentos sobre os dípteros e as aves.

E 1986 foi um grande ano da minha vida! Casei, passei no concurso como professora assistente aqui no Museu e ingressei no doutorado na Rural em Parasitologia Veterinária. Eu trabalhava e estudava ao mesmo tempo e defendi meu doutorado em 1989. Quando o professor Dalcy faleceu, assumi o laboratório e, ao longo dos anos, recebi muitos estudantes, entre eles meus primeiros estagiários, Valéria Cid Maia e Carlos Einicker Lamas, hoje pesquisadores independentes com liderança científica, multiplicando orientações nas suas áreas de atuação. Juntos, ampliamos significativamente as abordagens das pesquisas com os dípteros e as coleções, ao longo dessas décadas, com a contínua chegada de novos estudantes.

‘Nos tornamos pessoas melhores’
Desde 1976, venho aqui praticamente todos os dias úteis da semana, e tenho o Museu como um lugar muito agradável, de relações muito profundas. Sempre senti muito prazer em vir trabalhar e conviver com ótimas pessoas, grandes amigos mesmo, e essas relações se dão também fora daqui. Aliás, conheci meu marido Pi, o Pierre Guevalot, numa festa na casa da irmã da professora Janira. Foram 16 anos de muita felicidade, mas infelizmente ele faleceu, vítima de um câncer muito agressivo. Tenho tatuado o símbolo π, em homenagem a ele. O Pi trabalhava na IBM, e era muito participativo na minha vida. Vinha direto do trabalho, então chegava de terno no Museu para estar comigo nos eventos.

Ele também me apoiou e me acompanhou nos meus estudos aqui no Brasil e pelo mundo. Era uma pessoa muito especial! Sinto muita saudade e fiz muita terapia até descobrir que tem outras vidas igualmente felizes. Tive muita sorte de tê-lo na minha vida. Nessa convivência, nos tornamos pessoas melhores em todos os sentidos, sempre valorizando nossas melhores qualidades. Eu sempre fui fissurada em atividades físicas. Mas foi ele quem me ensinou a jogar tênis, que já pratico há mais de 40 anos. No dia a dia, gosto de correr e andar de bicicleta. E sempre alternei alguma atividade com a ginástica na academia, então teve uma época que pratiquei muay thai, beach tennis…
E quando eu completei 60 anos, vi uma apresentação de tecido acrobático de uma sobrinha e esse se tornou o meu novo desafio. Comecei a praticar e até tenho tecido no meu quarto, que dá para fazer muita pirueta, brincar, trabalhando concentração, equilíbrio e força. É simplesmente incrível!
Divertir-se é essencial sempre!
Já tivemos muitas conquistas desde o início da reconstrução do Museu. Recentemente, fiz uma apresentação com os marcos do que fizemos desde setembro de 2018 e até eu me surpreendi! Já tivemos nosso momento de luto na instituição, mas agora já temos muito para comemorar e pensar no Museu Nacional do futuro. Precisamos ainda conseguir mais recursos, o mais rapidamente possível, para concluir as obras do Paço de São Cristóvão para receber a sociedade nas futuras exposições e suas atividades educativas, completar as melhorias no Horto Botânico e também avançar aqui no Campus de Ensino e Pesquisa, que agora está com todos os módulos em atividade e finalizando a construção do prédio das coleções em meio líquido. O Campus trouxe nova vida para o Museu e para as atividades de convívio acadêmicos. Além disso, hoje, temos no Museu equipamentos de ponta que nunca tivemos, como o microtomógrafo, recentemente adquirido, ferramenta que realiza imagens de alta resolução trazendo impacto acadêmico nas pesquisas. As diversas contribuições recebidas têm sido fundamentais para essas conquistas.
Avançamos muito e, com a liberação de mais recursos, teremos um museu moderno, sustentável e inclusivo, com um olhar no compromisso coletivo. O compromisso coletivo será essencial! Como estou neste momento também como diretora adjunta de Ensino, meu olhar está muito para os estudantes de pós-graduação. Precisamos de um espaço definitivo, com instalações adequadas para as aulas e os laboratórios. Estamos trabalhando ativamente para concretizar essa conquista.
Vou concluir este relato com uma mensagem para os estudantes, que são a nossa visão do futuro. Não desistam nunca!! Não é e nunca foi fácil para ninguém. Muita perseverança, muitas parcerias e muitos afetos! Desejo muito sucesso na carreira de vocês e que encontrem sempre alegria no cotidiano. Que a pesquisa seja sempre um espaço leve, inspirador e repleto de descobertas, um lugar onde vocês possam aprender, crescer e se divertir. Isso faz toda diferença!
Beijos com carinho,
Márcia Souto Couri
Chefe do Laboratório de Diptera Neotropicais e professora titular do Departamento de Entomologia, sendo uma das curadoras da Coleção de Diptera. Está na atual Direção, como diretora adjunta de Ensino e Pesquisa do Museu Nacional/UFRJ.