Por meio de uma construção coletiva, com acesso a políticas públicas, bolsas e campanhas de arrecadação, a doutoranda Luana Braga, a Lua, ingressou no PPGAS do Museu Nacional/UFRJ. Recentemente, ela representou nosso corpo social na visita do Presidente Lula, e estes dias vai apresentar suas pesquisas durante um workshop em Harvard, nos EUA.
Aos 6 anos de idade, ela perdeu seu pai, sendo criada por sua mãe, que trabalha como manicure e sempre fez o impossível para Lua realizar seus sonhos de estudar. Voltando seu olhar para suas origens, no sertão baiano, a pesquisadora tem alcançado espaço das discussões científicas e de políticas públicas no cenário nacional e internacional. Vamos conhecer essa história, que é digna de um filme dos bons.
Harpia — Como foram seus primeiros momentos no Museu Nacional/UFRJ, Lua?
Lua Braga — Sempre fui muito sonhadora. Lembro que, no primeiro dia de aula, as minhas anotações ficaram completamente manchadas pelas minhas lágrimas de tanta emoção. Eu estava ali, muito feliz por realizar o sonho de fazer parte do PPGAS, que tem a nota 7 na Capes desde a sua fundação. E pensar que eu tinha ouvido de tantas pessoas que eu não iria conseguir, que aquele sonho que eu tinha não era para mim, que seria impossível.
Harpia — O que você pesquisou no mestrado?
Lua Braga — O tema da dissertação de mestrado foi “Memórias em Família: A Casa do Advogado do Povo, a Terra do Defunto Teimoso e a Política do Diabo”. Falei sobre as várias trajetórias do meu avô José dos Reis Braga, que contam as memórias dele, mas também é uma memória de um lugar, de um país, que também é uma luta e uma construção coletiva. Ele é um sindicalista rural, que durante a ditadura militar lutou bravamente com uma série de companheiros e fundou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Iaçu, no sertão baiano. Funcionou nos dois primeiros anos, entre 1975 e 1977, na clandestinidade, num clima de ameaças de morte, de casas e plantações sendo queimadas, tendo pessoas entrincheiradas para matarem umas às outras por disputa de terras com a chamada “Família do Gatilho”. Mais do que isso: meu avô participou de momentos do Brasil muito diversos. Trabalhou na construção de Brasília, participou da ascensão do agronegócio, trabalhando nas grandes fazendas de Goiás, entre outros momentos. Todas as vezes que ele saiu da Bahia foi para voltar e ficar com a minha avó, Ernestina Silva Braga, uma mulher preta, hoje falecida. Ele é um homem branco, que foi deserdado pelo meu bisavô por ter decidido casar com a minha avó, então ficou sem casa e sem terras. Não é sobre migração ou êxodo rural, mas outros processos de circulação no país. Quando eles voltam para a Bahia, meu avô ajuda na Revolução da Terra, nos anos 1970. Até hoje meu avô participa do Sindicato e é testemunha dos conflitos de terra na região. Ele foi um “peão de trecho” e diz que eu sou uma “peoa de trecho” e uma “diaba” que circula pelo mundo.
Harpia — E o que é a Revolução da Terra?
Lua Braga — A Revolução da Terra não perde em nada na história para o que foi Canudos, Cabanagem e nada disso. Mas ninguém ainda havia registrado para estar nos livros de História e eu fiz isso agora. É uma das tantas histórias de luta por terra, reforma agrária e garantia de direitos nesse país.
Harpia — Como foi esse processo de pesquisa?
Lua Braga — Retornei para a Bahia, com a ajuda dos meus orientadores Moacir Palmeira e John Comerford. Eles acreditaram tanto no meu projeto de pesquisa, que financiaram do bolso deles cada ida minha a campo, sendo a primeira vez que viajei de avião. Conversei com o povo que eu conversava a vida toda, registrei as histórias que meu avô sempre me contou, mas agora com a escuta de pesquisadora, registrando de uma outra forma, pelo “mundo das canetas”, como meu avô costuma dizer. Ele me indicava cada pessoa e as prioridades, sendo um etnógrafo, tão pesquisador quanto eu. Comecei a entender como aquele lugar era, sendo o lugar que eu tanto me identificava quando passava as minhas férias na infância. E comecei a participar ativamente do Sindicato.
Harpia — Como tem sido essa participação no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Iaçu?
Lua Braga — Durante o trabalho de campo, comecei a participar do próprio cotidiano do Sindicato, escrevendo projetos para angariar políticas públicas, participar das reuniões de Associação, de Conselho, redigi atas, entre outras atividades que tinham que ser feitas. No último campo que fiz era um período de eleições no Sindicato e ajudei na campanha para reeleger Adevanda, uma mulher negra à presidência. Acompanhei a chegada da perfuração de cinco poços artesianos, e estou acompanhando de perto a o reconhecimento da comunidade de Caatinga Velha, onde minha avó nasceu e viveu, como um quilombo. Para isso, estou em contato com pessoas do Incra e do IBGE para conseguirmos avançar nesse sentido. Também escrevi um projeto para o Sindicato, onde conseguimos R$ 308 mil para a agricultura familiar, garantindo emprego para 25 famílias durante um ano para a produção de comida sem veneno para a merenda escolar. O fato de ter conseguido adentrar nesse universo da universidade e dominar o “mundo das canetas” faz com que eu consiga inclusive servir de instrumento de justiça social e garantia de direitos para o meu próprio povo. Contribuí e acompanhei o processo para levar energia elétrica em 2020, que ainda não tinha, organizando tudo entre associações e com a ajuda de vereador e deputados da Bahia. É importante articular coletivamente com a população, com o território, a partir desses conhecimentos que eu trago do “trecho” para buscar melhorias para Iaçu, especialmente para a população rural. E estamos, juntos, conseguindo!
Harpia — Você foi escolhida para representar o corpo social, contar sua história e entregar para o Presidente Lula uma placa feita com a madeira queimada de setembro de 2018. Esse vídeo viralizou. Como foi para você?
Lua Braga — Foi o povo preto que colocou o Paço de São Cristóvão, sede do Museu Nacional, de pé. Eu me senti como uma embaixadora ao receber o Lula, representando as vontades e os desejos de muitas pessoas. Foi muito simbólico porque as minhas mãos estavam entregando para ele a representação de um lugar que teve uma história de muita dor para o meu povo preto, que foi escravizado para produzir muita riqueza, e que entrava somente pela porta dos fundos. Agora, a reconstrução desse lugar está passando pelas minhas mãos que representam o contrário dessa história. Foi uma oportunidade, inclusive, de ressignificar a história desse lugar, para produzirmos um território mais democrático, justo, comprometido e sério. E sem negar a nossa história: deixá-la ali presente e preservada para não se repetir mais esses erros. Agora, estamos fazendo a nossa parte pela porta da frente, pensando a reconstrução e também construindo o pensamento social brasileiro. Naquele momento, foi uma responsabilidade para a sociedade, para o Museu e também para mim, como a Luana Braga, nordestina de Iaçu — porque é de lá que eu sou, por me identificar assim. E acredito que também para o Lula, porque a responsabilidade dessa reconstrução também agora é dele.
Harpia — Como foi a repercussão do seu vídeo com o Lula em Iaçu?
Lua Braga — Na hora, comecei a receber ligações do pessoal do Sindicato, muitas homenagens, participei de entrevista em rádio e falaram de mim até na TV, com muitas pessoas compartilhando. Foi uma festa muito bonita. Me emocionei muito quando vi um cartaz da minha foto com o Lula e, ao lado, uma foto do tempo da luta da Revolução da Terra. Sinto muito respeito por essa história e sei que não fiz nada perto do que meu povo fez e faz. Me colocar lado a lado foi um reconhecimento que eu nem esperava. Quando eu chego nos espaços, eu não chego sozinha porque tudo é um processo coletivo, e levo essa história, discutindo políticas públicas pelo mundo. A história de Iaçu, a história do meu avô e da minha família me levou para discutir com pesquisadores da China, na JPS, que é do Journal of Peasants Studies — uma das publicações de maior impacto do mundo nesse tema. Já estive em congressos com pessoas da África do Sul, também estive no México com pesquisadores de todo mundo, sendo a única mulher negra, de universidade brasileira no espaço, com tudo financiado pelo governo alemão. E sou considerada uma das pesquisadoras mais importantes no Brasil, no que diz respeito a conflitos agrários, luta por terra e justiça social e climática, especialmente. E estou indo agora em maio para Harvard.
Harpia— E como surgiu essa oportunidade de ir à Harvard?
Lua Braga — Quando estive no México, estávamos discutindo as desigualdades do antropoceno, conflitos de terra, conflitos climáticos, questões decoloniais, e eu estava pautando muitas coisas relacionadas ao Brasil. Até cheguei a jantar com um representante do Ministério da Ciência e pesquisa da Alemanha. Ali foram discussões com pesquisadores principalmente da Europa e dos EUA e também tinham pesquisadores de Harvard. A partir disso, comecei a participar de alguns grupos como o Rural Social Movements, da China, e de coletivos de pesquisadores discutindo pautas em nível internacional. Fiquei sabendo que seria lançado o workshop do “Afro-Latin American Research Institute”, em Harvard. Foram mais de cem pesquisadores inscritos do mundo inteiro, eles selecionaram 16 e sou uma delas! Disseram que seria muito importante eu apresentar o meu trabalho e levar o meu olhar para dentro do Instituto. Tudo está sendo financiado por Harvard.
Harpia — Que máximo, Lua! Você relatou que sempre teve muitos sonhos. Já tinha sonhado em estar onde está hoje?
Lua Braga — Nem nos meus maiores sonhos eu tinha sonhado com tudo isso. No meu período escolar no interior de São Paulo, colocavam lixo na minha mochila, dizendo que eu morava no “lixão”, porque eu era pobre por morar no “Pé Vermelho”. Nessa mesma época, o professor Fábio contava histórias de quem tinha passado em universidades públicas, que não precisava pagar e era um ensino de alta qualidade, então ali eu só sonhava que um dia ele poderia contar também a minha história para futuros estudantes. Agora, já fiz a graduação na Unesp, concluí meu mestrado e estou no doutorado do PPGAS do Museu Nacional/UFRJ, adquirindo conhecimentos tão importantes, participando de discussões e sendo ouvida pela ONU, pelo governo federal, entre tantas instituições e esferas importantes, locais e internacionais. Semanas atrás eu estava com a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e também com representantes do Ministério da Cultura e do Ministério dos Direitos Humanos, sentada com representantes da Secretaria de Periferias, e dentro da Unicef debatendo políticas públicas para as periferias e projetos sociais da ponta. Tudo isso para que a minha história não seja somente minha. Eu tenho plena consciência de que eu sou fruto de todas essas políticas públicas que abriram caminhos e derrubaram algumas barreiras para que eu pudesse acessar e conseguisse construir tudo o que estou relatando aqui, agora. Não fiz nada sozinha. Foram muitas pessoas me ajudando e construindo isso comigo coletivamente. É por isso que eu preciso chegar nos espaços também coletivamente e continuar pautando isso de forma que mais pessoas possam passar por essas portas, para que encontrem caminhos de campo aberto e florido, sem portas, para ingressarem, se quiserem. O acesso à educação transformou a minha história e de toda a minha família. A minha mãe voltou para as salas de aula para aprender a ler a minha dissertação de mestrado. É como disse a filósofa estadunidense Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
Harpia — Lua, seu pai faleceu quando você tinha 6 anos, você relatou para o Lula que as políticas públicas te ajudaram… Resumidamente, como foi sua infância?
Lua Braga — Minha mãe, a Maria Sebastiana, conhecida como Tiana, fez de tudo para que eu continuasse seguindo meus sonhos de estudar. Eu sempre me dediquei muito aos estudos porque eu sabia que só assim eu conseguiria mudar a minha história. Tem coisas que a gente não conta, mas me lembro dela deixando até de comprar coisas no mercado para pagar parte da mensalidade do curso de inglês e de todo semestre negociar para que a bolsa de estudos fosse mantida, de pegar livros emprestados… Tudo foi com muita restrição e muita luta pra conseguir realizar meus sonhos. Lembro com nitidez até hoje do dia que era para eu levar R$ 2 para comprar um picolé para o piquenique de Dia das Crianças na escola, e vi minha mãe chorando no sofá, grávida do meu irmão, e sem condição de me dar essa quantia. Então não daria para eu ir à escola naquele dia especial, que eu tanto queria participar. Nunca mais isso irá acontecer com a minha família! Nunca mais a minha mãe irá chorar porque sente fome! Eu cheguei em um lugar que é irreversível, sabe? Sou muito grata às políticas públicas e a todos que contribuíram para que eu circulasse do interior de São Paulo para o Museu Nacional e conseguisse me manter. Nas férias, eu ia para a casa dos meus avós em Iaçu, na Bahia, e é ali que sempre me senti acolhida e que é o meu lugar. Minha mãe sempre falou do orgulho que sente de mim, que eu sou a luz de uma estrela que a ilumina, como o sol, e que ela sabe que nada e ninguém poderia ou poderá me parar. Aprendi muito com a coragem dela.
Harpia — Como é perceber hoje todas essas conquistas na sua vida, que foram muito além dos seus sonhos?
Lua Braga — Você faz ideia que, segundo o IBGE, meu avô é analfabeto, mas que ele sentou na minha banca de mestrado, ao lado do meu orientador? Foi um dia lindo e histórico, que nunca tinha acontecido no Museu Nacional! Ali eu senti que eu já tinha feito o que tinha que fazer. Foi a primeira vez que ele entrou numa universidade e foi contar a história dele, e minha mãe também estava lá com a gente assistindo. Em seguida, consegui ingressar no doutorado e estou fazendo muita coisa em políticas públicas, especialmente olhando para o meu povo no sertão baiano. E me tornei instrumento de justiça social no próprio Museu Nacional, criando o Coletivo Negro Marlene Cunha, pensando e discutindo cotas raciais também em outras instituições do Brasil. E agora indo até para Harvard eu vejo como é tão bonito e potente buscarmos as oportunidades para a gente construir coletivamente. Que ótimo que somos muitos e que estamos acreditando! Lá atrás eu somente tinha sonhos e hoje eu sei como isso pode mudar a vida de uma pessoa para sempre. O mundo parece pequeno porque hoje tenho contatos ao redor do mundo para articular as questões relacionadas aos meus temas e interesses de pesquisa. E sou a mesma menina feliz por rodar bombril pegando fogo pelas ruas. Que demais! E só estou no doutorado. Ainda tenho muito mais para conquistar e tem muita gente para chegar também. Vou continuar nesse movimento de contribuir para um mundo melhor. Sempre falo para o meu analista, o Matheus, que eu tenho urgência de amanhã e preciso fazer isso pra ontem.
Harpia — Você relatou seu projeto de mestrado. E o que você está estudando em seu doutorado no PPGAS?
Lua Braga — No doutorado, resumidamente, a pesquisa tem duas frentes. Continuo estudando o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Iaçu, porque é o meu lugar de produção de ciência e conhecimento. A minha tese vai no sentido de discutir as políticas públicas agrárias e movimentos de eleições. Acompanhei as eleições municipais, presidenciais e sindicais. Estou abordando como, nos sindicatos, sobretudo as trabalhadoras rurais são imprescindíveis para angariar, conseguir e manter as políticas públicas de reforma agrária no nosso país. E como elas estão fazendo isso dentro e fora do movimento social, sobretudo nos momentos eleitorais. Também estou falando como o quilombo da comunidade de Catinga Velha está sendo reconhecido a partir do momento que tem uma mulher negra como presidente do Sindicato.
Harpia — Que bacana, Lua. E o que significa o Museu Nacional/UFRJ na sua vida?
Lua Braga — O Museu Nacional mudou a história da minha vida, abrindo as portas do mundo inteiro para mim, por ter me construído enquanto intelectual. Sou muito grata a cada professor, a cada colega e tantas pessoas que me ensinaram a ler um texto acadêmico, a saber o que fazer com aquele conhecimento, como aquilo me ajuda a pensar a sociedade, como isso vai me ajudar a construir uma política pública e ajudar a construir a vida das pessoas e também a minha dentro dos espaços. Tudo construído com o rigor da ciência, mas com afeto também. O Museu Nacional me deu muito mais do que eu imaginava que fosse possível até. É um lugar de história, de cultura, de sonho, mas sobretudo um lugar de produzir futuro no presente, porque ele faz isso com muita gente aqui. Sinto um orgulho imenso em perceber que sou cientista na primeira casa de ciência do Brasil, produzindo uma ciência de alta qualidade e crítica, ao lado de pessoas comprometidas! Isso é incrível! Convido a todos que queiram fazer parte!
Harpia — Você vivia entre o interior de São Paulo e as viagens nas férias para Iaçu, principalmente. E como foi chegar ao Rio? O que mais te impressionou?
Lua Braga —Sempre tive o sonho de conhecer o mar e consegui num lindo dia de primavera no Rio, no Arpoador, quando vim para a etapa de provas de tradução de inglês e francês. Eu estava vestindo calça e uma blusinha, então se aproximou um vendedor de biquínis, o Seu Valdo, e pediu para eu olhar as mercadorias dele enquanto ele dava um mergulho. Na volta, ele falou que era a minha vez, que poderia me emprestar um biquíni, que poderia amarrar uma canga, e ele foi me dando várias opções e soluções, enquanto eu só falava de impedimentos. Até que contei para ele que eu não saberia entrar no mar, porque eu nunca tinha entrado. Ele segurou minha mão, falou para eu confiar nele, e que o mar é como a vida e que eu iria conseguir passar no Museu Nacional e vencer, que a vida é assim: vai ter onda que vai bater baixinho, que vai bastar um pulinho, mas vai ter momentos que tem que atravessar, senão a onda carrega. Até hoje mantenho amizade com ele, que foi uma pessoa que me ajudou nos momentos iniciais no Rio, até perguntando se eu tinha o que comer. Na minha defesa de mestrado, ele estava lá assistindo também, naquela sala lotada, entre tantas pessoas queridas e importantes na minha vida e que fazem parte dessa construção coletiva. Quando nos conhecemos, ele falou que vendia esses biquínis para complementar seu salário de porteiro, sendo essencial para ajudar a filha a se manter na faculdade de Direito. E todos nós vencemos e continuaremos vencendo, além dos nossos sonhos: eu, Seu Valdo, a filha dele e tantas outras pessoas, por meio das políticas públicas e da garantia de direitos.