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José Pombal Jr.: herpetólogo e curador das coleções de Anfíbios do Museu Nacional

Quando decidi prestar o concurso para ser professor do Museu Nacional/UFRJ, em meados da década de 1990, a cidade do Rio de Janeiro estava em uma fase particularmente complicada quanto a violência e organização. Eu trabalhava em Campinas, e só vim para o Rio, com a minha mulher e o meu filho de apenas 3 meses, porque era uma mudança para trabalhar no Museu. Ao chegar, logo nos primeiros dias, fiquei maravilhado com a receptividade dos colegas e com a possibilidade de pesquisar esse acervo riquíssimo de anfíbios, no Setor de Herpetologia, onde se dedicaram cientistas de primeira grandeza como Bertha Lutz e Alípio de Miranda Ribeiro.

Fui muito bem recebido e com conversas sempre produtivas especialmente pela Márcia Couri, Miguel Monné, Sérgio Alex K. Azevedo e Ulisses Caramaschi, este meu companheiro de Setor. Cheguei aqui muito feliz e com muita gana de trabalhar, assumindo um compromisso comigo mesmo de entregar na minha aposentadoria uma coleção ainda melhor e maior do que a que encontrei. Além disso, tem a parte de ensino, onde tive a oportunidade de ter ótimos estudantes, somando dezenas de pós-doutores, doutores e mestres. Tudo isso se mistura muito na minha vida. E faltam 5 anos para eu me aposentar e, se deixarem, quero voltar à minha origem: ficar somente arrumando os bichos na coleção, estudando os detalhes na lupa, que é o que mais me dá prazer.

 

Produção científica

Fui convidado para estar aqui na seção Quem Faz o MN, compartilhando com vocês um pouco da minha trajetória. E me pediram para incluir como foi, para mim, estar listado entre os top 2% de cientistas do mundo mais reconhecidos em 22 campos do conhecimento. Esse levantamento foi produzido pela revista norte-americana “Public Library of Science (Plos)”. Na UFRJ como um todo foram 61 cientistas, e especificamente aqui do Museu também estão os professores Adriano Kury, Alexander Kellner e Miguel Monné

Eu recebi a notícia do meu nome nesse ranking pelos meus amigos de Campinas, em um grupo de WhatsApp, e fiquei contente com isso, é claro, porque é algo que demonstra alguma visibilidade entre meus pares zoólogos. Mas não devemos levar esse ranking tão a sério assim, porque ele é alcançado com base em determinados critérios, por algoritmo, e tudo depende de qual peso é dado a cada uma das variáveis. Quero deixar claro isso, porque tenho colegas brilhantes, que não estão nessa listagem.

Mas esse fato me remete a uma decisão que eu tomei anos atrás. Eu me enxergo como herpetólogo e taxonomista, e não sei se você sabe ou não, mas existem modas em ciência e se você as persegue certamente terá mais chance de ser citado e obter mais recursos para seu laboratório. Isso é complexo porque para se conseguir recursos financeiros para as pesquisas existe uma grande pressão para que se esteja nos periódicos de altos índices de impacto. E precisamos de financiamentos para o Setor, até para comprar o álcool para manter as coleções, e para insumos e equipamentos para nossas pesquisas. Mas, a meu ver, seguir essas pressões, nem sempre é o melhor para a ciência, até porque tem muito estudo científico ótimo em periódicos que não são de alto impacto e estudos nem tão bons assim em periódicos muito bem avaliados (às vezes é surpreendente como estudos problemáticos podem ser publicados em revistas tão requisitadas!). Então, quando saiu a lista dos 2% mais influentes em suas respectivas áreas, sendo no meu caso a zoologia, fiquei feliz por ter seguido o caminho de pesquisar o que eu considero importante e os assuntos que me dão satisfação, e também por constatar que os trabalhos científicos que eu já participei estão sendo lidos e utilizados. Considero todas as medidas de produtividade em ciências, cursos de pós-graduação, universidades, etc. complicados, mas, claro, ficamos felizes em aparecer na parte superior de qualquer desses índices.

A espécie Brachycephalus alipioli em homenagem ao Alípio de Miranda Ribeiro. Foto: João Luiz Gasparini
Paradoxo

É fato que vivemos um paradoxo aqui no Museu Nacional. De um lado, temos um acervo valiosíssimo com pesquisas de ponta sendo realizadas e, de outro, existe uma grande falta de recursos e estrutura (e isso já antes do incêndio) para darmos andamento ao que é essencial para essas pesquisas. Olhando de perto, percebo que as produções científicas somente acontecem por conta de um esforço hercúleo seu corpo social. Eu cheguei aqui já para a mudança das coleções do Setor de Herpetologia, que ficavam no Anexo Alípio de Miranda Ribeiro para o Horto Botânico. Havia uma caminhonete no Museu, e nem tinha dinheiro para o combustível, então o Ulisses Caramaschi pagou do próprio bolso – só para resumir as diversas dificuldades que tivemos para essa mudança. Nessa época, muitos espécimes estavam conservados em potes de maionese ou de café solúvel: Ulisses e eu coletávamos frascos nas lixeiras de nossos prédios. E somente conseguimos os potes ideais, pouco a pouco, buscando diferentes recursos – e isso levou uns 20 anos.

 

Orgulho das coleções

Sinto muito orgulho das nossas coleções de anfíbios do Museu Nacional, de sua importância histórica (porque expoentes da herpetologia aqui trabalharam), de como foram ampliadas e qualificadas ao longo desses anos, graças a diferentes contribuições dos que passaram por aqui, entre professores, estudantes e técnicos. Ela ainda não está tão organizada, como gostaríamos, por conta de dois problemas que considero bons: sempre estão entrando novos exemplares após cada trabalho de campo e ela é extremamente visitada. Antes da pandemia, recebíamos aproximadamente 50 pesquisadores-visitantes por ano, entre os que ficam um dia e outros que chegam a ficar uns 15 dias. E já teve um caso recente de um que ficou seis meses. Isso tudo além de todos os nossos projetos que estão em andamento. Para se ter uma ideia, o volume de visitantes nessa coleção é comparável ao do museu americano. A coleção de herpetologia deles é quase quatro vezes maior do que a nossa e é um dos museus de história natural mais ricos do planeta. Isso é um aspecto bom, porque demonstra que a nossa coleção é de grande visibilidade e importância. Para quem trabalha com taxonomia e sistemática de anfíbios a coleção de anfíbios do Museu Nacional é incontornável. Sabemos disso e, por isso, temos um grande esforço em mantê-la aberta a todos os pesquisadores capacitados. Temos alguns materiais representativos de diferentes partes do mundo, mas ela é mais importante pela representatividade da Floresta Atlântica, tanto por estarmos nela como também pelo interesse dos pesquisadores que já trabalharam nesta instituição.

Como exemplo posso destacar a Estação Biológica de Santa Lúcia, no Espírito Santo, e nossa coleção conta com materiais desse remanescente da Mata Atlântica, desde o tempo em que o Augusto Ruschi trabalhou no Museu Nacional. Também há materiais trazidos por pesquisadores posteriores, e, depois disso, também fomos várias vezes com os estudantes. Aliás, é um ponto importante para a nossa coleção todo o município de Santa Teresa.

Nosso acervo é rico e relevante para a ciência. Para se ter uma ideia, 20% das espécies de anfíbios descritas no Brasil têm o material-tipo no Museu Nacional, inclusive as sinonimizadas, que é quando o avanço tecnológico e teórico nos mostra que, o que eram consideradas duas espécies, na verdade, é a mesma espécie com alguma variação na aparência, por exemplo. Além disso, 20% das espécies hoje consideradas válidas foram descritas por algum pesquisador do Museu Nacional. Isso é impressionante, porque quando ocorre algum congresso brasileiro de herpetologia estão uns 800 herpetólogos brasileiros – ou seja é desproporcional a contribuição do Museu Nacional para o conhecimento dos anfíbios brasileiros.

 

O Museu Nacional é mais do que um local de trabalho

Para mim, o Museu não é um emprego, não é um trabalho: é muito mais do que isso na minha vida. Percebo que é assim para a maioria das pessoas que estão aqui. E fiz a escolha pessoal de me dedicar integralmente à instituição, sem assumir posições fora. Aqui, já fui diretor-adjunto de Ensino no primeiro quadriênio do professor Sérgio Alex K. Azevedo como diretor, coordenador do PPGZOO, chefe de departamento e, logo depois do incêndio, fiquei na Comissão de Espaço, enfim, funções administrativas que realmente não me atraem. Agora estou como vice-presidente da SAMN (Associação Amigos do Museu Nacional), onde, felizmente para mim, o professor Luís Fernando Dias Duarte é o presidente e, também estou integrando a Congregação como representante dos Professores Titulares. Não são funções que eu sinta prazer em desempenhar, mas que eu considero importantes para o Museu, opinando com a minha visão, entre as diversas que temos na instituição, buscando fazer parte da solução. Precisamos estar juntos para avançar, lutando pelas coisas importantes e mostrando nossa unidade para a sociedade. Vivemos um período particularmente tempestuoso e todos precisamos estar juntos e imbuídos da recuperação do Museu Nacional.

 

Gosto dos bichos desde sempre

Sempre soube que eu seria zoólogo, mesmo antes de conhecer a carreira, porque sempre gostei de bichos e quis trabalhar com eles. Quando eu era criança, gostava de ver programas como “Mundo Animal” e outros assim, e achava que seria veterinário. Quando eu tinha 12 anos, foi morar na minha rua em Campinas um pesquisador da Unicamp, que, para você ter uma ideia, naquela lista dos 2% de cientistas mais influentes do mundo, ele é o zoólogo mais citado no Brasil: o Ivan Sazima. Um belo dia, a minha mãe bateu palmas no portão dele para que ele me desse uns conselhos, porque a minha casa já estava lotada de bichos, havia serpentes, sapos, pássaros, aranhas e quando chegaram os morcegos ela realmente se assustou. Só que, ao contrário do que ela imaginava, ele me incentivou ainda mais. Já aos 13 anos eu fazia estágio em taxidermia na Unicamp, indo após o colégio e nas férias. Foi assim até os meus 17 anos, quando eu fui contratado como mensageiro, porque era o único jeito que poderia entrar um menor de idade na época. Os professores de vertebrados da Unicamp e estudantes me indicavam bibliografia. Ingressei na PUCCAMP à noite, em março de 1986, para continuar trabalhando na Unicamp, e publiquei o meu primeiro artigo científico em maio de 1986, sobre a ocorrência de albinismo em uma espécie de peixes e, no ano seguinte, publiquei minha primeira espécie nova de anfíbios. Estes dois estudos em coautoria com Ivan Sazima e Célio Haddad, respectivamente.

Devo muito ao Ivan Sazima, que foi também o meu orientador no mestrado! Fiz o meu mestrado e doutorado pela Unesp de Rio Claro. Célio Haddad foi meu orientador de doutorado e, também, uma enorme influência na minha carreira. Eu preferi conduzir minha pós-graduação em um centro diferente de onde trabalhava. Primeiro porque na Unicamp havia o curso de ecologia e eu queria zoologia e, depois, eu julgava que aumentaria minha vivência estudar em uma instituição diferente de onde trabalhava (já como biólogo nesta época).

A espécie Scinax lutzorum em homenagem à Bertha Lutz

Passei por todos os grupos de vertebrados na Unicamp, e lá também trabalhava nas coleções, já organizando e tombando exemplares. Os anfíbios eram os que eu mais gostava quando ia ao campo, observando como eles se comportam. Para mim, eles são muito sedutores, apaixonantes, são barulhentos e me chamam a atenção. Trabalhar com eles também combinou com os meus hábitos de vida, que são noturnos, e nunca daria para eu acordar super cedo e estudar aves, por exemplo. A grande maioria dos anfíbios têm hábitos noturnos, e à noite é o que tudo acontece na floresta para esses estudos.  Ainda hoje uma das coisas que mais sinto prazer é estar ao lado de uma região alagada quando está escurecendo e ouvimos as primeiras espécies que começam a cantar: os machos vocalizam para atrair as fêmeas. Se alguma espécie que nunca ouvi canta, a curiosidade é muito grande.

 

Família

Meu filho acaba de completar 26 anos. Ele seguiu a área financeira, completamente diferente da minha e da mãe, que é professora de ciências. Como chegamos ao Rio quando ele era um bebê, ele visitou muito o Museu, inclusive participando de alguns trabalhos de campo. Moramos em Laranjeiras, meu filho estudou no Colégio São Vicente, então, até hoje o padre Lauro Palú, que foi diretor quando meu filho estudou nesse colégio, é meu “consultor” de latim. E é justamente por conta desse contato com ele que comecei a fazer estudos de campo no Caraça (MG), que é onde fica uma RPPN da mesma ordem que mantém o colégio no Rio de Janeiro.

 

Futuro para o Museu Nacional

Desejo que o Museu Nacional tenha uma estrutura física compatível com a importância das nossas coleções que sobreviveram e das que estamos reconstruindo agora. O meu sonho dourado é que tenhamos uma exposição como as que existem nos melhores museus nacionais ao redor do mundo. Que ele ocupe o lugar que merece!

Quero que, daqui a 50 anos, o pessoal possa olhar para trás e perceber que todos nós do corpo social conseguimos dar a volta por cima, apesar de estarmos em um dos períodos mais escuros da história do Brasil. Estávamos à beira do precipício para desistir da instituição, mas estamos aqui, indo bem além do que poderíamos supor para esta reconstrução. Temos um caminho importante a seguir.

 

Até logo,

José Pombal Jr.

Curador das coleções de Anfíbios do Museu Nacional /UFRJ.

Departamento de Vertebrados.

Vice-presidente da Associação Amigos do Museu Nacional (SAMN).

 

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