Encobertos por séculos sob a floresta amazônica, os Geoglifos do Acre foram avistados há poucas décadas durante sobrevoos em áreas desmatadas. Do alto, foram reveladas estruturas geométricas bem definidas e de grandes proporções feitas por uma antiga civilização. Pesquisas científicas buscam compreender por que foram criadas, como e quando foram feitas, e quais usos tinham. Por sua relevância, os geoglifos serão integrados ao circuito expositivo Diversidade Cultural do Museu Nacional/UFRJ.
Nesta matéria da seção Conexões, apresentamos dados do primeiro estudo sistemático de análise cerâmica no sítio Fazenda Atlântica, no Acre, defendido no mestrado de Jane Pessoa Coêlho, fatos históricos sobre a descoberta dessas estruturas que foram trazidos pelo professor Alceu Ranzi em palestra recente no Museu, além de informações da equipe responsável pelas Novas Exposições do Museu, previstas para a inauguração a partir de 2026.
Para começar, afinal, o que são os Geoglifos do Acre? Trata-se de uma temática nova e ainda em aberto na ciência. O que se sabe até agora é que, apesar de compartilharem o nome com os do Peru, que são as Linhas de Nazca, eles são completamente diferentes. Enquanto as Linhas de Nazca são desenhos complexos em forma de animais, os geoglifos que estão sendo encontrados no sudoeste amazônico são construções de terra profundas, em estruturas geométricas, como círculos e quadrados, variando de 1 a 6 hectares. Sua cronologia é antiga, abrangendo de 1.000 anos antes de Cristo a 1.000 anos depois de Cristo. O geoglifo estudado por Jane Pessoa possui cerca de 3.000 anos, considerando o “presente”, que tem como referência na arqueologia o ano de 1950, início das datações por Carbono-14.
Sítio Geoglifo Fazenda Atlântica: primeira análise detalhada de uma coleção cerâmica associada aos geoglifos
A pesquisadora Jane Pessoa Coêlho defendeu em agosto deste ano no mestrado o primeiro estudo sistemático de análise cerâmica de um geoglifo, o sítio geoglifo Fazenda Atlântica, no Acre. Teve a orientação da professora do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional/UFRJ (PPGArq), Denise Maria Cavalcante Gomes. O trabalho dela questiona se realmente esses sítios geoglifos foram somente espaços cerimoniais, assim como pesquisas anteriores apontavam. Ela traz novas perspectivas sobre o uso e a materialidade desses sítios milenares.
Trabalhando com 447 fragmentos selecionados de um total de 2.856, o estudo identificou organizações de cinco funções principais para as vasilhas: servir, cozinhar, fermentar, processar alimentos e transportar líquidos. Entre os destaques, estão peças com marcas de fuligem, indicativas de uso para cozimento, e outras com corrosão na superfície, associadas à fermentação de bebidas.
A pesquisa contou com o uso de mapas gerados por imagens de satélite, permitindo a atualização da quantidade de estruturas identificadas na região, que agora ultrapassam mil registros. A colaboração com especialistas, como o geógrafo João Paulo, doutorando do PPGArq do Museu Nacional/UFRJ, e a arqueóloga Angislaine Freitas Costa, que concluiu o doutorado também no PPGArq, foi fundamental para os avanços das análises. João calculou que o sítio estudado por Jane tem seis hectares. Angislaine contribuiu fazendo croquis e reconstituição.
Quando perguntada como se sente em desenvolver essa pesquisa pioneira na região onde nasceu, Jane respondeu: “Eu me sinto muito lisonjeada em conseguir desenvolver esse projeto e colaborar com as pesquisas sobre os Geoglifos no Acre. Quando comecei, em 2007, como estudante de iniciação científica, eu ainda não tinha ideia da dimensão e complexidade dessas estruturas”.
Jane relatou na entrevista ao Harpia que o solo do sítio geoglifo Fazenda Atlântica é extremamente compacto. O uso da área para criação de gado, com constante pisoteio, contribui para compactá-lo ainda mais. A maioria das escavações atingiram profundidades médias de 50 a 60 centímetros, mas, em uma das unidades, foi possível atingir até 1,60 metro. Um outro detalhe para se levar em conta nos conhecimentos sobre o lugar é que o Rio Iquiri, está localizado a cerca de 2 quilômetros do sítio, sendo o recurso hídrico mais próximo. Outros geoglifos foram mapeados ao longo de sua extensão, indicando que as populações antigas que viviam nessa área tinham acesso ao rio. Durante o período de cheia, essa distância pode ser reduzida, o que facilitou o acesso à água para as atividades realizadas no local.
Destaques da palestra ‘Os Geoglifos: Amazônia em Múltiplas Geometrias’
Professor Ranzi palestrando para o corpo social do Museu Nacional/UFRJ. Foto: Diogo Vasconcellos (MN/UFRJ)
No segundo semestre deste ano, à convite do PPGArq do Museu Nacional, o professor da Universidade Federal do Acre e da Universidade Federal de Santa Catarina, o paleontólogo Alceu Ranzi, apresentou a palestra “Os Geoglifos: Amazônia em Múltiplas Geometrias”. Ele foi um dos primeiros pesquisadores a publicar estudos sobre o assunto. Trazemos a seguir, nesta matéria, alguns detalhes do que ele apresentou para o corpo social do Museu sobre a história de como os geoglifos foram descobertos.
O professor Ranzi relembrou o público sobre marcos históricos conhecidos desde a chegada de Colombo à América em 1492, passando pela descoberta das linhas e geoglifos de Nazca, no Peru, na década de 1930, até os Geoglifos do Acre detectados em 1986. Destacou que na década de 1970 já havia informações sobre figuras geométricas desenhadas no solo, que poderiam indicar evidências arqueológicas, mas as informações como estavam não despertaram muita atenção.
Somente em 1999, durante um voo comercial para Rio Branco, no Acre, o professor Alceu Ranzi teve a oportunidade de confirmar a existência dessas figuras, deixando evidente que se tratava de um elemento importante do relevo e que não poderia ser ignorado. Elas foram identificadas como geoglifos. Somente em 2000, com avião contratado especialmente para sobrevoar a região, foi possível realizar fotos profissionais e chamar a atenção para esses achados, especialmente na imprensa. Foram estabelecidas parcerias com instituições e pesquisadores de diferentes especialidades do Brasil e do exterior, buscando mapear, datar e avançar os estudos. Ainda há muito a ser pesquisado.
É interessante informar que esses voos para visualizar os geoglifos precisam ser realizados em horários específicos porque em determinados horários, sem as sombras, as figuras ficam imperceptíveis. O professor Ranzi explicou que identificaram que o melhor horário era por volta das 6h30 da manhã.
Em 2002, o professor Ranzi concedeu uma entrevista para o Fantástico da Rede Globo sobre o assunto, ampliando para o grande público a existência dos Geoglifos do Acre.
Assista à matéria veiculada no Fantástico:
Em 2005, foi iniciada uma cooperação entre a professora Denise Schaan, da Universidade Federal do Pará, e Martti Parssinen, da University of Helsinki.
Além disso, com o avanço da tecnologia, o professor Ranzi começou a procurar geoglifos com a ajuda do Google Earth e a marcá-los na plataforma. Com o passar do tempo, os estudos também foram feitos a partir de sobrevoos de balão. Com as fotografias, os pesquisadores envolvidos perceberam que estavam diante de uma grande descoberta e que precisavam avançar os estudos.
O que se sabe hoje? O professor Alceu Ranzi destacou os seguintes pontos, no seu entendimento: Desde o início dos estudos, os geoglifos permitiram confirmar que a Amazônia foi habitada em áreas anteriormente consideradas floresta virgem. Porém, permanece um mistério: quais foram os instrumentos utilizados para construir essas gigantescas estruturas com profundidade que chega a 3 ou 4 metros e mais de 100 metros de diâmetro. Ele pontua que acredita-se que essas estruturas foram concebidas como aldeias, sendo locais onde as pessoas “trabalhavam, sonhavam, brincavam, amavam, tinham suas famílias e enterravam seus mortos”. Ao longo do tempo, os pesquisadores conseguiram uma repercussão mundial com matérias veiculadas na Science, The Guardian, Spiegel Online Wissenschaft, entre outros.
Em 2015, os Geoglifos do Acre foram indicados para serem reconhecidos como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Já em 2018, o Geoglifo Jacó foi tombado pelo Iphan. Entre as perspectivas futuras, o professor Ranzi aponta que há muito o que ser estudado, especialmente usando drones e outras tecnologias para avançar esses conhecimentos mesmo em áreas cobertas de florestas, mantendo-as intactas.
Na conclusão da apresentação, ele incluiu essas aspas da professora Denise Schaan, estudiosa do tema e já falecida: “Os geoglifos são uma grande descoberta. Eles não representam uma antiga cidade cheia de ouro, há muito procurada por exploradores da Amazônia, mas eles são de fato um El Dorado para os arqueólogos: são vestígios de uma sofisticada sociedade pré-colombiana, capaz de construir estes monumentos”. No final, o corpo social conversou com o professor Alceu Ranzi sobre as hipóteses e buscaram mais detalhes sobre o relato histórico e as perspectivas do que está sendo desenvolvido em pesquisas.
Diante das diversas lacunas existentes ainda sobre os sítios Geoglifos do Acre para a ciência, a professora Cláudia Carvalho, como ouvinte da palestra, fez uma comparação com os sambaquis, que percebe-se pelos estudos que não são todos iguais.
O que o público encontrará essencialmente sobre os geoglifos nas futuras exposições do Museu?
Para responder a esses pontos, trazemos dois depoimentos. Um do Paulo Victor Catharino Gitsin, da Seção de Museologia (SEMU), e outro da professora-visitante do PPGArq, Célia Helena Boyadjian, que trabalhou como consultora nas pesquisas para o desenvolvimento desse tema nas futuras exposições.
“A ideia é que os geoglifos integrem, no Circuito Expositivo Diversidade Cultural, o módulo ‘História Profunda da América’, em especial na parte que fala sobre a ocupação da região amazônica. Os geoglifos são um tópico interessante que reitera que ainda há muito para ser pesquisado sobre as diferentes comunidades que habitaram a América, o que justifica o estabelecimento de novas pesquisas sobre diferentes assuntos. Em relação à materialização do tema, o principal elemento que podemos apresentar sobre os geoglifos são imagens, na maior parte aéreas, demonstrando a sua monumentalidade, diversidade e dão conta da quantidade de sítios identificados”, destaca o museólogo Paulo Victor.
“A ideia do módulo é mostrar que existe gente há dezenas de milhares de anos no nosso continente e que o passado humano no território que a gente conhece hoje como Brasil é, além de muito longo, culturalmente rico, com uma grande diversidade de povos e expressões culturais. Na exposição, a gente vai mostrar apenas um pequeno recorte desse passado diverso e dinâmico. Vamos ilustrar, por meio das evidências arqueológicas, por exemplo, que a Amazônia não era intocada e vazia quando da chegada dos europeus, como nos faz acreditar o pensamento hegemônico, mas era densamente povoada e diversa. Essas sociedades tiveram grande influência na composição atual da vegetação Amazônica e criaram estruturas monumentais no meio da floresta, como os Geoglifos, tratados pelo professor Alceu Ranzi em sua palestra. O meu contato com o tema dos Geoglifos antes de participar como consultora das novas Exposições do MN/UFRJ, foi apenas através dos estudos sobre microvestígios botânicos (minha área de pesquisa) que o professor mencionou na palestra. Mas a experiência na consultoria, sob supervisão da professora Denise Gomes, me fez aprofundar meus conhecimentos, embora ainda existam muitos mistérios sobre essas estruturas tão intrigantes e fascinantes. No processo de desenvolvimento do conteúdo expositivo sobre os Geoglifos, o professor Ranzi foi generoso nos fornecendo material bibliográfico e mediando contatos com profissionais que nos doaram material muito bonito que será exibido ou usado como base para a produção dos recursos acessíveis dessa parte da exposição”, explica a arqueóloga Célia Boyadjian.