Por meio de pesquisa etnográfica nos morros da Mineira e de São Carlos, na zona norte do Rio, a antropóloga Camila Fernandes revela as dinâmicas do perverso sistema estruturado para cobrar somente das mulheres-mães o cuidado com as crianças. E esse conteúdo da tese de doutorado foi transformado no livro “Figuras da Causação: As Novinhas, As Mães Nervosas & Mães que Abandonam Os Filhos“, publicado recentemente pela editora Telha. Ele faz parte da coleção Antropologias Feministas Contemporâneas. A pesquisadora conversou com o Harpia sobre os principais pontos dessa obra, que você pode conferir a seguir.
Motivos para você ler esse livro
“A partir da leitura desse livro, desejo que a sociedade passe a humanizar as mulheres-mães, entendendo que elas não têm o dever de segurar o mundo nas costas, porque nem tudo deve ser responsabilidade delas, especialmente quando elas não têm uma rede de apoio. Todas as pessoas da sociedade possuem um papel social na criação das crianças, porque elas são um bem coletivo”, avalia a pesquisadora Camila Fernandes, que fez o doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ (PPGAS) e atualmente realiza atividades de pós-doutorado na Bahia.
E ela completa: “Que a gente saia do lugar da dívida, como se as mulheres-mães estivessem dando trabalho para a sociedade, e passe a se apaziguar com uma visão que somente se pode ter a existência coletiva se a gente entendê-las como pessoas dignas de falhas e fraquezas, dignas de receber ajuda e, sobretudo, também sujeitas de direitos”. A antropóloga destaca também a importância de se compreender os benefícios da creche para a sociedade, mudando a visão de enxergar como gasto público e passar a implementá-las como um investimento econômico e social. Mais adiante, nesta matéria, iremos especificar esse ponto.
Sobreposição de estereótipos perversos
Ao observar a percepção generalizada e estereotipada da sociedade sobre as mulheres-mães das periferias, Camila visualiza uma sobreposição de recriminações, como se tivesse o formato daquelas bonecas russas matrioskas, que simbolizam a ideia de maternidade, fertilidade, amor e amizade. Entretanto, essa sobreposição voltada para os tipos de mulheres da periferia — sob os olhos da sociedade — acumulam uma série de moralizações, coladas umas às outras pelos rótulos pejorativos. Essas rotulações recaem sobre a vida sexual delas, julgadas como excessiva, e que elas não sabem se prevenir de uma gravidez. Se não bastasse, elas são taxadas de “mães ruins”.
As mulheres-mães das favelas são sempre apontadas e mal faladas, por diferentes atores sociais. Camila observa que elas não são quaisquer mulheres, mas de acordo com o comportamento considerado desviante pela sociedade, que gera uma repulsa. Ele está muito presente nas meninas da favela identificadas como “novinhas”, que não tem a ver com a idade etária, mas essas jovens são estereotipadas por gostarem de dançar e usar roupas curtas, por exemplo. Há também a mãe que é apontada como “nervosa”. “Existe uma forte moralização em torno desse nervoso dessas mães que estão absolutamente esgotadas e ‘descabeladas’. Esse é um aspecto perverso porque confundem o nervosismo com falta de amor e de paciência, então, essas mulheres são colocadas nesse lugar de ambivalência entre o riso, a comédia e a perversidade”, observa a pesquisadora.
O terceiro olhar questionador é para as mulheres acusadas de abandonar seus filhos. “Entendi nessa pesquisa que existe muita violência, de todos os tipos, quando uma mãe precisa deixar de cuidar do seu filho. Em alguns casos a família paterna da criança diz que será melhor eles cuidarem por ela, a mãe acaba aceitando por seu contexto de vida, e por trás essa mulher é muito mal falada, com o filho ouvindo tudo isso. Essa é mais uma das facetas desse delírio social, porque é um delírio a mulher ter que trabalhar, seguindo a sociedade capitalista, e, ao mesmo tempo, também ter o dever de cuidar pessoalmente do filho”, explica Camila.
No livro é relatada a história de Betânia, que Camila percebe como a história do Brasil. Essa mulher-mãe sai de sua cidade para trabalhar, os pais dela propõem que eles fiquem com a criança, mas após 2 anos, quando ela consegue reencontrar seu filho, ela vai tentar abraçá-lo e relata que sentiu um vento gelado que a toma inteira, deixando-a petrificada. Pouco a pouco, ela entendeu que, à distância, diziam uma coisa, mas na presença a família e o entorno haviam deslegitimado a ida dela para trabalhar fora dali e seu filho estava se comportando de acordo com o que ouviu sobre a mãe. É mais uma imagem destorcida da mãe na sociedade. “Se formos pensar em outros modelos de criação, poderia ser pensado nos modelos de criação coletiva. Até no jurídico normativo a criança é dever da família, do Estado e da sociedade, mas temos essa questão muito mal resolvida ainda”, evidencia Camila.
“Um grande incômodo que senti ao longo da pesquisa foi sobre a rivalidade que é incentivada nesses espaços, mas percebo que faz parte desse sistema perverso, estruturado para que as mulheres falem mal umas das outras. Elas são cobradas para que não levem mais um filho para a creche ou para suas famílias, porque é muito mais fácil do que cobrar dos governantes, como o prefeito, o governador ou o Presidente que se tenha creches, por exemplo. Ainda mais agora que acabamos de sair de um governo, onde o Bolsonaro foi eleito e ganhou apoiadores por conta de seus discursos voltados para o controle de natalidade, num sistema que determina quem pode ter filho e quem não pode. Ouvi diferentes vertentes dessa mesma linha de raciocínio, incluindo gestores que afirmaram para mim que as mulheres das favelas têm filhos demais”, ressalta a antropóloga.
Redes de cuidado e omissão do Estado
Camila chama a atenção para a confusão existente entre a sexualidade das mulheres, a sexualidade reprodutiva e se o Estado deve acolher ou não essas crianças e assumir a responsabilidade sobre o cuidado com elas. Destaca-se que há somente no Rio de Janeiro uma demanda de mais de 30 mil crianças esperando por uma vaga na creche. “Há uma longa discussão sobre o direito à creche, que fica em uma espécie de limbo jurídico, onde existe uma tensão entre o direito da criança e o dever do Estado. Diferentes estudos deixam claro os impactos da creche na primeira infância, não somente para o desenvolvimento da criança como para sua família. A diferença proporcionada pelo acesso à creche fica muito explícito nos territórios populares”, informa Camila Fernandes.
“A circulação de crianças sempre foi o tema das minhas pesquisas, e fui mãe muito jovem, aos 20 anos, e minha filha Maria Clara tem 20 anos hoje. Já no meu estágio conheci a realidade social de outras mulheres, que estavam recorrendo ao SUS para a laqueadura de trompas, e ali vi muitas situações e discursos que me incomodaram. Assim, decidi pesquisar os cuidados das crianças, assim como as dívidas econômicas e também ‘morais’ que as mulheres-mães acabam contraindo na sociedade”, explica a pesquisadora.
No mestrado, Camila Fernandes estudou as redes de circulação de crianças, desde as casas de cuidado até as crianças que cuidam de outras crianças. Já para o doutorado, parte da tese revela o papel importante das mulheres na rede de cuidados e como o Estado se beneficia em não assumir suas responsabilidades, deixando de gerar um desenvolvimento econômico e social no país.
“Percebi nas minhas pesquisas um olhar vertical do Estado para essas casas de cuidado e uma dificuldade imensa de pensar a partir da realidade dessas mulheres que são especialistas no cuidado, a partir de sua prática cotidiana, sendo um trabalho sem nenhuma romantização, porque é desvalorizado e da muito trabalho e responsabilidade. São mulheres que cresceram cuidando de irmãos e vizinhos, desde a infância delas, e conheci na pesquisa mulheres idosas que cuidaram de gerações de uma mesma família”, ressalta Camila sobre a longa duração sobre a oferta desse trabalho.
“Cada casa de cuidado é um imenso suporte social para a comunidade e essas mulheres-cuidadoras não tem nenhuma ajuda financeira ou incentivo, como a inclusão delas na Previdência. Não é possível que não se vejam formas mais colaborativas e menos unilaterais e arbitrárias, porque o Estado sabe que essas casas existem e suprem a falta de creches públicas”, avalia a pesquisadora. Em suas pesquisas, a antropóloga viu somente casos isolados de apoio de algumas prefeituras.
Camila Fernandes observa, ao contrário do que ouviu em suas pesquisas, que a taxa de natalidade das mulheres pobres vem decrescendo no Brasil. “Na realidade, as mulheres, cada vez mais, não querem ter filhos. Daqui a algumas décadas, não teremos mão de obra para cuidar de uma população envelhecida e de forma precária”, conclui.
Saiba mais:
O livro “Figuras da Causação: As Novinhas, As Mães Nervosas & Mães que Abandonam Os Filhos” pertence à coleção Antropologias Feministas Contemporâneas da Editora Telha. Acesse.