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Evolução da articulação mandibular dos mamíferos é revelada por fósseis brasileiros

A história evolutiva dos mamíferos é mais complexa e interessante do que se imaginava. Estudo publicado na revista Nature, de setembro, esclarece aspectos importantes da evolução da articulação crânio-mandibular. Por meio de microtomografias computadorizadas de alta resolução foram analisados crânios de cinodontes, ancestrais diretos dos mamíferos, datados do final do período Triássico e encontrados no Sul do Brasil.

Reconstrução em vida de Brasilodon quadrangularis (acima) e Riograndia guaibensis (abaixo). Desenho do paleoartista argentino Jorge Blanco.
Reconstrução em vida de ‘Brasilodon quadrangularis’ (acima) e ‘Riograndia guaibensis’ (abaixo). Desenho do paleoartista argentino Jorge Blanco

Com o título “Brazilian fossils reveal homoplasy in the oldest mammalian jaw joint” (em tradução livre: “Fósseis brasileiros revelam homoplasia na articulação mandibular mais antiga entre os mamíferos”), o estudo foi realizado por: James Rawson da Universidade de Bristol, Reino Unido; Agustín Martinelli, do Museu Argentino de Ciências Naturais, Argentina; Pamela Gill, da Universidade de Bristol e do Museu de História Natural do Reino Unido; Marina Soares, do Museu Nacional/UFRJ, Cesar Schultz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e Emily Rayfield, também da Universidade de Bristol.

A professora Marina Bento Soares mostra a mandíbula de 'Riograndia guaibensis'
A professora Marina Bento Soares mostra a mandíbula de ‘Riograndia guaibensis’

A professora do Departamento de Geologia e Paleontologia do Museu Nacional/UFRJ, Marina Bento Soares, explica: “As rochas do Triássico Sul-Americano, particularmente aquelas no Brasil, renderam uma riqueza de descobertas paleontológicas, incluindo numerosas espécies fósseis que são cruciais para a compreensão dos passos anatômicos que levaram ao plano corporal dos mamíferos. Em nenhum outro lugar do mundo há uma gama tão diversa de formas de cinodontes intimamente relacionadas aos primeiros mamíferos. Desde o início dos anos 2000, estudos sobre esses cinodontes aumentaram significativamente nossa compreensão dos aspectos anatômicos e paleobiológicos envolvidos na origem dos mamíferos.”

Da Era Mesozoica ou Era dos Dinossauros

Os mamíferos mais antigos, que são as formas que cientificamente chamamos de mamaliaformes, surgiram no final do período Triássico, há cerca de 205 milhões de anos, a partir de seus ancestrais, os cinodontes. Entre as características distintivas dos mamíferos, que os diferenciam de anfíbios, aves e répteis, destacam-se a mandíbula composta por um único osso, o dentário responsável por sustentar os dentes inferiores, e a orelha média formada por três ossículos: martelo, bigorna e estribo. Do ponto de vista evolutivo, essas estruturas estão profundamente interligadas, e é nos fósseis desses ancestrais dos mamíferos que os paleontólogos encontram pistas das transformações anatômicas que culminaram na condição “mamaliana”. Por meio da firme articulação crânio-mandibular, denominada articulação dentário-esquamosal, um mamífero abre e fecha a boca de modo que os dentes se encaixam de forma precisa. Aliada a uma dentição especializada e o “céu da boca” fechado, tal articulação permite um eficiente processamento dos alimentos por meio da mastigação.

Para essa pesquisa, foram analisados fósseis de espécies relacionadas à origem dos mamíferos que habitaram a região que hoje é o Sul do Brasil e o Oeste da Argentina, nas mesmas regiões e no mesmo momento em que surgiram os primeiros dinossauros. Naquele ambiente, os dinossauros ocupavam o topo da cadeia alimentar como predadores, enquanto nossos ancestrais, de tamanho semelhante ao de um camundongo atual, eram suas presas. A tecnologia usada nesse estudo permitiu analisar detalhes anatômicos das articulações mandibulares dos pequenos crânios, medindo entre 3 e 4 centímetros, das espécies Brasilodon quadrangularis e Riograndia guaibensis.

Diferentemente do que se pensava, Brasilodon ainda retém a clássica articulação quadrado-articular, por outro lado, Riograndia, um cinodonte menos aparentado aos primeiros mamíferos, já exibe o contato dentário-esquamosal. Essa descoberta evidencia que a aquisição da articulação crânio mandibular “mamaliana”, não foi exclusividade dos mamíferos, surgindo independentemente, mais de 20 milhões de anos antes, em um grupo de cinodontes. Os pesquisadores se surpreenderam ao identificar que as duas espécies brasileiras, que coexistiram no tempo, já tinham articulações crânio-mandibulares próximas ao padrão mamaliano, mas com dois modelos diferentes entre si.

Crânios de Brasilodon e Riograndia, em vista lateral, com detalhe das imagens obtidas por tomografia computadorizada da região da articulação crânio-mandibular. Fotos dos crânios: Luiz Flávio Lopes.
Crânios de Brasilodon e Riograndia, em vista lateral, com detalhe das imagens obtidas por tomografia computadorizada da região da articulação crânio-mandibular. Fotos dos crânios: Luiz Flávio Lopes.
A evolução

Os pesquisadores conseguiram esclarecer como evoluiu a articulação crânio-mandibular dos cinodontes até chegar à articulação dentário-esquamosal dos mamíferos. Nos cinodontes, se observa nitidamente um aumento do osso dentário da mandíbula, com uma concomitante redução dos ossos pós-dentários. Este processo continuou até que a maioria dos ossos pós-dentários foi perdida, tendo o último deles, o articular, se soltado totalmente da mandíbula e migrado para a região da orelha média (onde o estribo já se encontrava alojado), passando a ser chamado de martelo. Por sua vez, o osso quadrado do crânio também se soltou e se deslocou para a orelha média, recebendo o nome de bigorna. Assim, o trio de ossículos característico dos mamíferos – martelo, bigorna e estribo – estava estabelecido. Com isso, a mandíbula dos mamíferos passou a ser formada exclusivamente pelo dentário, um único osso robusto e portando dentes que se encaixam com precisão perfeita. Isso é viabilizado por meio de uma articulação firme e eficiente entre o côndilo do dentário e a concavidade (denominada fossa glenoide) do esquamosal.

Parte da equipe de pesquisadores, em reunião na Universidade de Bristol, Inglaterra: Pamela Gill, Agustín Martinelli, Emily Rayfield, Cesar Leandro Schultz e Marina Bento Soares
Parte da equipe de pesquisadores, em reunião na Universidade de Bristol, Inglaterra: Pamela Gill, Agustín Martinelli, Emily Rayfield, Cesar Leandro Schultz e Marina Bento Soares

 

O trabalho publicado na revista Nature é resultado de um projeto de pesquisa colaborativa que tem o objetivo de estudar diversos aspectos envolvidos na origem e evolução dos mamíferos.

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