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Nossas Coleções Etnológicas renascem de forma inovadora

A partir de um novo olhar para o presente e o futuro dos povos indígenas, afrodescendentes e tradições populares estão sendo recriadas as Coleções Etnológicas do Museu Nacional/UFRJ. Trata-se de uma linha curatorial que busca o diálogo e a parceria com lideranças e intelectuais dessas comunidades, incorporando-os, numa perspectiva estratégica, no processo de reconstrução e gestão dessas novas coleções. A iniciativa traz novos horizontes para os museus e a ciência, e já está sendo apresentada, discutida e apreciada por grandes instituições museológicas internacionais.

Vasilha cerâmica com grafismos Iny-Karajá escolhida pelo cacique Sokrowé Karajá para a representação nas Coleções. Crédito foto: Francisco Moreira da Costa e Franco Salvoni

As nossas Coleções Etnológicas começaram a ser reconstruídas praticamente do zero, porque as reservas técnicas do Setor de Etnologia e Etnografia (SEE) foram totalmente destruídas. “Estamos fazendo algo muito novo em relação ao tratamento das coleções etnográficas dentro de um grande museu nacional de história natural e de antropologia. Em especial temos dialogado com museus na Alemanha, Suíça, Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Itália. Está sendo um processo muito rico para a antropologia enquanto ciência, e para refletir sobre o que será o lugar das coleções etnográficas nos museus”, avalia o curador das Coleções Etnológicas do Museu Nacional/UFRJ, João Pacheco de Oliveira.

E completa: “Os grandes museus europeus foram construídos no século XIX e os pressupostos da antropologia da época, em um mundo de expansão colonial, eram o desaparecimento dos povos e culturas indígenas, imaginadas sempre sob o prisma da primitividade e do passado. Não tiveram a oportunidade de desenvolver isto que estamos fazendo atualmente. Estamos colaborando ativamente com a reconstrução do Museu Nacional e o seu futuro acervo etnográfico, trazendo a marca da ciência contemporânea e sendo testemunha dos debates e da reformulação radical dos padrões de pesquisa e colecionamento”.

A especificidade das Coleções Etnográficas

O professor João Pacheco explica que esse novo projeto de curadoria é bem diferente de outras áreas do Museu Nacional. As áreas de Arqueologia ou Antropologia Biológica, por exemplo, trabalham com civilizações que desapareceram e suas coleções somente podem ser recompostas por meio de doações ou escavações em sítios arqueológicos.

“Já para as Coleções Etnológicas as nossas populações estão vivas e podem ser incorporadas dentro de um processo de interlocução dialógica e pesquisa, de acordo com as práticas respeitosas e colaborativas da antropologia de hoje. Esse é o lado fascinante do trabalho que estamos desenvolvendo. O Museu ir em busca de parcerias efetivas com essas comunidades, recompondo o nosso acervo e planejando exposições de acordo as autorrepresentações e objetivos das comunidades de origem. Ou seja, seguindo as suas políticas de memória e respeitando seus segredos e interdições”, ressalta.

Máscara Ticuna. Crédito da foto: Francisco Moreira da Costa e Franco Salvoni

Essa nova forma de curadoria e gestão não deverá em nenhum momento romper a relação entre os artefatos e as comunidades vivas das quais eles procedem.  O professor João Pacheco explica que há muitos itens das culturas indígenas que não podem ser mostrados, devassados, por implicarem em aspectos sagrados e forças espirituais que devem absolutamente serem respeitados. “Não podemos pensar os artefatos como se eles fossem indiferentes aos que os produziram, cujo uso arbitrário e irresponsável não fosse capaz de afetar a vida e o bem-estar de seu produtor e de sua comunidade. Não são como joias que brilham porque nós as olhamos e cujo valor é atribuído por nós, observadores eventuais ou cientistas. Elas têm o seu valor intrínseco dado pelas culturas a que pertencem. E é esse valor intrínseco que propomos que o Museu Nacional deve respeitar, colocar como o centro de suas práticas e atenção, atuando sempre através de encontros dialógicos e interculturais”, pontua o curador.

Hoje, ressalta João Pacheco, seria um anacronismo pensar a coleta científica nas ciências humanas como uma simples atividade extrativa realizada sem participação e anuência das coletividades pesquisadas. “As populações estudadas não estão mais do outro lado do oceano ou há séculos de distância. Os estudantes indígenas, hoje, e felizmente, estão presentes nos mais variados cursos de nossa universidade. Em nossas pós-graduações, como no PPGAS e no PROFLIND, há muitos estudantes indígenas. Inclusive já há diversos que concluíram seus doutorados e atuam como professores e pesquisadores, com livros publicados e sendo profissionais bastante reconhecidos”.

Professor João Pacheco em viagem ao Amazonas em agosto de 2019, no dia seguinte ao ritual de iniciação feminina dos Ticunas. Está com os pesquisadores indígenas Salomão Inácio Clemente (à sua esquerda) e Leonardo Firmino (à direita), anotando informações sobre a coleção etnográfica recebida
As Coleções físicas

A curadoria das Coleções Etnológicas está voltada para fazer com que a cultura indígena continue a ser reproduzida e valorizada dentro do seu próprio local, fornecendo apoio a essas culturas. Desde 2018, uma série de peças já chegaram ao Museu Nacional/UFRJ, estando neste momento de reconstrução em uma reserva técnica, em espaço cedido pelo Colégio Pedro II. Segundo Paula Aguiar, gerente de Coleções, em abril 2022, este novo acervo já monta a mais de mil peças tratadas, digitalizadas e tombadas.

Nesse período de reconstrução, o professor João Pacheco foi duas vezes à região do Alto Solimões, trazendo máscaras rituais, objetos emblemáticos da cultura dos Tikuna. Estão no acervo também artefatos reunidos pelo antropólogo indígena Tonico Benites, que foi orientando do professor João Pacheco de Oliveira no mestrado e no doutorado no PPGAS-MN, formando uma nova Coleção Guarani-Kaiowá. “É uma iniciativa maravilhosa e pioneira, onde um indígena está conduzindo todo esse processo. E, assim, estamos conectando a pesquisa antropológica com as próprias políticas de memória dos indígenas, preocupados com a reconstrução de suas próprias casas de reza”, observa o professor João Pacheco.

Coroa Jeguaká da Coleção Guarani-Kaiowá. Crédito da foto: Francisco Moreira da Costa e Franco Salvoni

Estão chegando também materiais para a Coleção Karajá. Uma das mais antigas professoras do Museu Nacional, Maria Heloísa Fenelón Costa, falecida nos anos 1990, trabalhou com o povo Karajá e formou importante coleção, perdida em setembro de 2018. Hoje, o doutorando do PPGAS e consultor da Unesco, Rafael Andrade, está realizando pesquisa na região.

Os valiosos aportes da Campanha Recompõe

A campanha Recompõe é voltada para a recomposição do acervo expositivo do Museu Nacional/UFRJ. Ela busca sensibilizar museus, instituições de pesquisa, diferentes coletividades representativas da nossa sociedade e colecionadores de todo o mundo a doarem peças originais. São diversas coleções de história natural e antropologia que estão sendo recebidas.

Escultura cerâmica de Reinata Sadimba, Moçambique, doada pelo pesquisador da Fiocruz, Wilson Savino. Crédito da foto: Crenivaldo Veloso

Para as Coleções Etnológicas, cabe destacar a importância dessas contribuições.  O pesquisador da Fiocruz, Wilson Savino, foi o primeiro doador, ofertando ao Museu Nacional a coleção que durante muitos anos organizou com peças de arte do continente africano, somando 229 peças.

O diretor do Museu Nacional/UFRJ, Alexander Kellner, por meio de seus contatos na Áustria, veio a obter a doação da Coleção Lukesh, que estava sob os cuidados do Universalmuseum Janneum, de Graz. Formada pelo missionário Anton Lukesh nas décadas de 1960 e 1970, incluindo plumárias, armas e adornos de vários tipos, ela é composta por material etnográfico pertencente aos povos indígenas do Alto Xingu.

Coleção Lukesh, que estava sob os cuidados do Universalmuseum Janneum, de Graz.
Antecedentes desse novo estilo de curadoria

Esse estilo de curadoria já estava sendo iniciado no Museu Nacional/UFRJ nas últimas duas décadas. Foi o caso da exposição itinerante “Os Primeiros Brasileiros”, cuja primeira exibição foi em 2006, feita em parceria com uma organização indígena (APOINME) e a Fundação Joaquim Nabuco. Como esta é gestora do Museu do Homem do Nordeste, no Recife, a organização da exposição já contribuiu também para que a parte indígena daquele museu fosse inteiramente refeita. No próprio Museu Nacional essa nova linha curatorial se refletiu na reformulação da Sala da Etnologia, na exposição permanente, inaugurada em 2009. Nos anos seguintes, as exposições temporárias “Os Karajá: Plumária e Etnografia”, inaugurada em março de 2012, e a “Kumbukumbu”, com curadoria de Mariza de Carvalho Soares, foram concebidas nessa perspectiva.

A inspiração mais antiga para isso, no entanto, veio na concepção e realização do Museu Magüta, primeiro museu indígena do país, inaugurado em 1991, no Alto Solimões, no Amazonas. A iniciativa contou com o apoio e a orientação do professor João Pacheco de Oliveira e de sua equipe, em associação com as lideranças e professores bilíngues do povo Tikuna. Esse museu foi premiado em 1996 pelo ICOM (International Council of Museums).

Identificação e recriação de peças

O Museu Nacional/UFRJ é frequentemente procurado pelos grandes museus para ajudá-los na identificação de objetos etnográficos sob a sua guarda, dados como de proveniência do Brasil, mas sem especificações necessárias: povo, usos, entre outros. O professor João Pacheco explica que, em iniciativas de solidariedade, algumas instituições tem disponibilizado imagens e informações digitais ali existentes sobre os povos e culturas indígenas do país: “Hoje já temos cerca de 20 mil objetos em formato digital proveniente dessas parcerias, o que nos proporciona apoiar o empoderamento pelos próprios indígenas de conhecimentos e técnicas do passado, bem como a revitalização de suas práticas culturais”.

Um destaque é um projeto de plumária, que está sendo realizado por meio de parceria com o Museu de Berlim, onde os indígenas estão examinando e recriando um Manto Tupinambá, na Bahia. Eles estão tendo acesso a informações técnicas importantes sobre o antigo manto: trançado, urdidura, penas, etc. Está previsto para junho deste ano, no aniversário do Museu Nacional, um encontro com o Museu Etnológico de Berlim, com um seminário para relatar, debater e aprofundar a experiência.

Não existia o Manto Tupinambá no Brasil em nenhum dos nossos museus. O professor João Pacheco destaca que os indígenas brasileiros somente teriam acesso a esses materiais se eles pudessem ir a Copenhagen, Paris ou Florença, por exemplo. Mas agora estão com acesso às peças digitais que desapareceram de suas culturas há cinco séculos, e isso será importante em especial para ser disponibilizado para as escolas em comunidades indígenas. São peças que seus pais e avós não viram nunca.

São novas possibilidades abertas. “Esse é um projeto de grande envergadura e visibilidade internacional. Acredito que o corpo social do Museu Nacional precisa conhecer e possa sentir orgulho dessa tarefa gigantesca, que está sendo desenvolvida por uma equipe muito pequena e com recursos financeiros limitados, mas profundamente empenhada na recriação das Coleções Etnológicas”.

Saiba mais:

Conheça as publicações disponibilizadas gratuitamente, que incluem informações sobre as Coleções Etnológicas. Neste momento, estão sendo produzidos também livros, cartilhas e vídeos para difundir as diferentes culturas dos povos indígenas brasileiros e dos diferentes povos do continente africano. Acesse.

Visite a exposição virtual “Os Primeiros Brasileiros”. Acesse aqui.

Conheça a Campanha Recompõe. Acesse.

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