
Um dia, a equipe de Resgate de Acervos do Museu Nacional entrou em contato comigo porque encontraram um bumba-meu-boi de cerâmica na área do palácio onde ficava a Biblioteca Francisca Keller. Alguém tinha falado que lembrava de ter visto uma peça parecida na minha mesa. Fui lá para reconhecê-la, sendo a primeira vez que retornei ao Paço de São Cristóvão. Foi bem emocionante! Entre armários de aço retorcidos e cinzas, lá restou ele. Além do acervo do nosso Museu, há coisas que tinham que ter sobrevivido e ainda não sabemos o motivo. É indescritível.
Esse foi um presente que eu ganhei de uma das minhas filhas, após uma visita ao Museu do Pontal. Desejo que esse bumba-meu-boi fique numa espécie de redoma para lembrarmos deste nosso período de reconstrução. Para conhecimento de todos, a Biblioteca Francisca Keller pertence ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, o PPGAS. Ela ficava ainda no palácio, próximo ao Jardim do Chafariz. Até onde me recordo, de todo o acervo da nossa Biblioteca, somente restou ele, praticamente inteiro, e outro item distorcido. Agora, ela está prestes a ser instalada no Horto Botânico, no mesmo prédio da Biblioteca Central, que já tinha sido transferida, anos antes.

‘Dois anos em dez’
O incêndio aconteceu justamente quando estávamos nos preparativos para celebrar os 50 anos do PPGAS. A recomposição do acervo da Biblioteca Francisca Keller foi iniciada já em 2018, quando foi montada a Comissão BFK+50. Em pouquíssimo tempo, recebemos inúmeras doações de pessoas e instituições do Brasil e do exterior. As mais renomadas instituições desenvolveram campanhas internas, destacando o tipo de acervo que desejávamos, como Harvard, Cambridge e tantas outras pelo mundo. Tivemos uma grande dedicação dos professores e estudantes para alavancarmos diferentes campanhas. A Paula Mello, coordenadora do Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI), teve também um papel importante ao enviar mensagens para todas as editoras que ela tinha contato. Em pouco tempo conseguimos superar nossas metas.

Se alguém ainda tivesse alguma dúvida sobre a relevância do PPGAS, rapidamente passou a entendê-la. E, na chegada das caixas e mais caixas ao Museu, todos que tinham algum cantinho em suas salas nos ofereciam para abrigar as inúmeras doações. Sou muito grata por ter feito parte da Comissão, representando a Biblioteca Francisca Keller. Foi um verdadeiro trabalho de “formiguinha”, onde conquistamos tantas novas e diversificadas coleções. Tenho a sensação de que trabalhamos tão intensamente e conquistamos tantos acervos, como se tivéssemos vivido dois anos em dez.
Minha chegada à Biblioteca Francisca Keller
Como um “livro em branco”, cada vez que um bibliotecário chega a uma biblioteca, passa a escrever uma nova história. Eu trabalhei na iniciativa privada durante muitos anos, incluindo um grande escritório de advocacia especializado em marcas e patentes, e, quando minhas filhas eram bem pequenas, trabalhei na biblioteca de uma escola bilíngue, onde elas estudaram.
Em 2009, resolvi fazer o concurso do SiBI, que é um órgão suplementar do Fórum de Ciência e Cultura, gerenciador das 43 bibliotecas da UFRJ. Acredito que, por morar na Tijuca e meu perfil de ter trabalhado já com educação, tive a sorte de ser alocada na Biblioteca Central do Museu Nacional, inicialmente. Tomei posse em 2010, sendo um período maravilhoso, conhecendo esse acervo riquíssimo de história natural com suas obras raras.

Em 2014, houve um pedido da Biblioteca Francisca Keller e resolvi me candidatar porque sempre “namorei” a Antropologia. Entramos eu e uma colega que era bibliotecária da Letras da UFRJ. Talvez pela minha idade, me colocaram na chefia, cargo que fiquei até 2020. Fui muito bem recebida pelos professores, com seus diferentes perfis, e principalmente pela professora María Elvira Díaz-Benítez, que era a pessoa responsável dentro do Museu pela Biblioteca, sendo a coordenadora do PPGAS, na época.
A Biblioteca Francisca Keller tem uma peculiaridade de sempre ter sido constituída a partir do acervo dos professores e das aquisições feitas por meio de seus projetos e relações de pesquisas. Encontrei uma Biblioteca completamente organizada, e passei a ler os professores do PPGAS tão renomados e com estudos tão interessantes. Da mesma forma, conheci a vida dos indígenas a partir dos nossos estudantes indígenas e de suas visões de mundo, valorizando Gaia e a Cosmologia. Aprendi com eles que, entre as plantas e os bichos, nós somos só mais um.
Conheci diferentes realidades no PPGAS, porque temos um leque de gente das mais variadas formações, desenvolvendo as mais diversificadas pesquisas e vindo de distintas realidades de vida. Isso é lindo. Aliás, as bibliotecas de pós-graduação têm um público muito específico, onde convivemos durante anos com aqueles estudantes e buscamos contribuir da melhor forma com suas pesquisas. É especial acompanhá-los ao longo do tempo.
Sem falar que, no tempo que ficávamos no palácio, era maravilhoso trabalhar ouvindo os passinhos das crianças e seus burburinhos pelas exposições do Museu. Sempre que eu podia, eu gostava de aproveitar um intervalo do meu almoço para ficar observando as reações com nosso rico acervo, com aqueles olhinhos brilhando e perguntando tudo. Era encantador! É bem admirável o trabalho que a SAE faz com as escolas e, mais recentemente, também o projeto Meninas com Ciências. São nesses contatos que muitos se despertam para escolher a carreira de cientista ou até mesmo valorizar a ciência.
Eu fico pensando em quem está chegando neste momento ao Museu, ainda sem as instalações físicas ideais. Para mim, mais do que tudo fica evidente a importância da conexão entre as pessoas que estão no Museu e com suas histórias. Estamos prestes a poder trabalhar nos nossos espaços, mas são as diversas conexões pessoais que irão contribuir para acolher a todos enquanto isso.
Em breve, voltarei a trabalhar no Horto Botânico, quando for inaugurada a Biblioteca Francisca Keller com todo o rico acervo conquistado desde 2018, recebendo pessoalmente os estudantes que já estão e os que vão chegar. Ainda vou ficar muito tempo por aqui.

E, na reabertura do Museu Nacional, quero subir com os meus netinhos pela escadaria monumental e ficar observando o que vai encantá-los nas futuras exposições, assim como eu ficava observando as visitas de escolas anos atrás. Vai ser incrível!
Um abraço carinhoso,
Dulce Maranha Paes de Carvalho
Bibliotecária da Biblioteca Francisca Keller do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ (PPGAS).