Há uns 20 anos, enquanto eu passeava com meu filho João Pedro no Pátio do Chafariz, o professor Gustavo Nunan comentou que a cena o fez lembrar do meu pai, José Augusto Costa, que também me trazia ao Museu Nacional na infância. Ele foi um grande companheiro de expedições do meu pai, que começou a trabalhar aqui em 1953, contribuindo para a reorganização e os cuidados com o Herbário do Departamento de Botânica, com acervo iniciado pelos naturalistas. Meu pai sempre quis que eu trabalhasse aqui, mas relutei. Cheguei a cursar e trabalhar na área de mecânica industrial, uma paixão minha até hoje. No entanto, com os conselhos dele e do professor Arnaldo Campos Coelho, decidi vir para o Museu, onde sou realizado com minhas atividades e vou ficar até me aposentar.
Comecei em 1987, prestando serviços na Seção de Malacologia. Para quem não sabe, resumidamente, é o estudo dos moluscos, como lesmas, ostras, mariscos, caracóis, polvos, lulas. Passei a ocupar um cargo permanente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que incorporou os trabalhadores que já estavam nas instituições públicas. Orgulhoso da minha decisão, meu pai me desejou uma trajetória de respeito, me dizendo: “Vista a camisa do Museu Nacional e jamais use o nome do Museu”. Essas palavras me acompanham até hoje, assim como todos os seus ensinamentos e valores, e o amor pelo Museu.
Com o professor Arnaldo, aprendi a “ler” as Coleções de Malacologia, identificando as espécies. Ele me ensinou a organizar aulas, planejar e participar de expedições científicas, ajudar os estudantes, sempre com a percepção da imensa importância dessas coleções. Ele passava as mãos nas gavetas e caixas e enfatizava que ali estavam coleções-tipo de espécies até já extintas na natureza e que precisavam ser muito protegidas. Passei a transmitir isso também para todos que entravam em contato com esse material. Foi assim quando recebi na quinta-feira, 30 de agosto de 2018, na nossa sala que ficava no Paço de São Cristóvão, sede do Museu Nacional, um grupo de estudantes do Campus Macaé da UFRJ, mostrando como aquelas coleções de Malacologia são uma relíquia para a ciência.
2 de setembro: uma das noites mais longas da minha vida
Quando eu passava pela portaria do meu condomínio, na noite daquele domingo, 2 de setembro de 2018, para um passeio em família, o porteiro me abordou e falou que estava vendo na televisão o incêndio do Museu Nacional. Imediatamente, saímos de Jacarepaguá e nos direcionando para o palácio. Consegui chegar por volta das 19h40. Encontrei a professora Cristiana Serejo, que na época era vice-diretora do Museu, e falei sobre a minha intenção de retirar as coleções de Malacologia. Fomos até o capitão do Corpo de Bombeiros, que autorizou e indicou um soldado, que iluminou o caminho com uma lanterna e ajudou a arrombar a porta.
Nem sei como, mas aquelas gavetas e caixas tão pesadas – que sempre precisei de auxílio para manuseá-las – consegui carregá-las uma a uma, correndo para deixá-las em local seguro próximo ao Prédio Anexo Alípio de Miranda Ribeiro. Acredito que foram salvos 98% das Coleções de Malacologia. Cabe ressaltar que o professor Paulo Buckup, do Setor de Ictiologia, também me ajudou e isso foi muito importante. Íamos e voltávamos com os materiais, priorizei também salvar o computador que eu sabia que continha todos os registros. Só ficaram faltando algumas caixas que estavam no alto e que a gente precisaria de uma escada, mas não deu tempo de buscá-la… Até que chegou um momento em que os bombeiros não deixaram mais ninguém entrar, pelo risco, porque o fogo já tinha tomado conta de todo o palácio. Não deu para pegar as caixas tão importantes que estavam no alto. Deixei para trás todos os meus pertences pessoais, porque não eram prioridade. Como já não podíamos mais entrar, passei então a focar em organizar o material que foi salvo em local seguro dentro do Anexo, sempre destacando bem para as pessoas não colocarem nada ali perto, principalmente material de acervo didático. Era muito material para guardar em condições minimamente adequadas e eu estava completamente focado em proteger o que estava salvo.
De repente, ouvi a voz do meu filho João Pedro me chamando. O que poderia ser? Nem poderíamos imaginar que tudo poderia ficar ainda mais complexo naquela noite nas nossas vidas. Precisamos voltar urgentemente para nossa casa porque uma pessoa tinha tirado a própria vida e caído na área do nosso apartamento. Quando chegamos, pedi para meu filho e a mãe dele, Vanessa, irem dormir e fiquei tomando café, esperando a chegada da polícia. O corpo somente foi retirado por volta das 6h da manhã, então nem dormi e já voltei direto para o Museu, conseguindo permissão das autoridades competentes para terminar de alocar as caixas e gavetas dentro do Prédio Anexo. E ali ficamos até o anoitecer, organizando na medida do possível até tudo estar devidamente protegido. Foi bonito ver as manifestações das pessoas, sendo solidárias e lamentando o ocorrido. Os estudantes do Campus Macaé lembraram do que falei para eles, dias antes, sobre a importância das Coleções de Malacologia e ficaram preocupados em como eu estava. Foi tudo muito emocionante.
Tempos depois, já no Resgate do Acervo, entrei novamente no palácio e chorei muito. Foi muito difícil estar ali entre os destroços, com tanto acervo importante naquelas condições. Mas já estávamos desde o primeiro instante cuidando do que foi salvo e buscando mais itens para as coleções para que as pesquisas científicas fossem mantidas e o acervo ampliado. Foi muito bonito ver todo o corpo social unido para dar o seu melhor nesta reconstrução.
Homenagem da Sociedade Brasileira de Malacologia
Em 2019, a equipe da Malacologia ficou insistindo para eu ir ao Congresso de Malacologia, em Juiz de Fora, mas eu tinha acabado de me separar da Vanessa, mãe do meu filho, e estava sem condição emocional. Inicialmente, estava pensando que aquela insistência fosse para eu me distrair um pouco. Até que o professor Vinícius Padula chegou para mim e me contou que eu seria homenageado pelo o que foi feito no dia do incêndio. Mas eu realmente não tinha como ir. Agradeci a todos os responsáveis pela homenagem por mensagem, depois durante o encontro on-line, que ocorreu já na pandemia em 2020 e, mais recentemente, pessoalmente. Sou grato por tudo, mas gosto de enfatizar que eu somente fiz na noite do incêndio o que eu faço todos os dias, sem heroísmo ou nada assim. Só fiz o que tinha que ser feito e continuo fazendo no meu dia a dia. Guardo essa placa com carinho especial e agradeço pela homenagem.
Expedições ‘com a proteção de Deus e dos mateiros’
Entre estar no laboratório ou estar nas expedições científicas, seria muito difícil escolher porque cada uma delas me deixa muito satisfeito. No laboratório, gosto de contribuir com meus conhecimentos sobre as espécies com os pesquisadores, organizar o material, preparar as aulas… Acompanhei muitos estudantes que atualmente são pesquisadores de destaque na área, como o professor Alexandre Pimenta, hoje coordenando o Departamento de Invertebrados, e tantos outros.
Quanto às expedições científicas, cresci com meu pai relatando as aventuras dele por lugares tão bonitos do Brasil, que poucos têm a oportunidade de conhecer. Não tive a oportunidade de ir a campo com ele, mas tive a companhia do Paulo Magno que trabalhou tanto com meu pai quanto comigo e me relatava algumas histórias que vivenciaram juntos. Nosso trabalho é uma continuidade do que fizeram os naturalistas que ali passaram. Conheci muitos lugares surpreendentes, estando em contato com os mais diferentes biomas e culturas como a maravilhosa Ilha do Marajó, a Coroa Vermelha no Sul da Bahia, a Guiana Francesa, o Oiapoque… É completamente indescritível estar na Amazônia, coletando espécies. Dependendo do objetivo e hábitos das espécies, a gente coletava à noite ou de dia. E tinha também o perigo da mata porque no Oiapoque, por exemplo, a gente passou em locais de travessia de onças. Ali, a nossa proteção era Deus, nos guardando, e os mateiros, que nos orientavam sobre onde passar e o que fazer. São muitas histórias bem vividas, contribuindo com a coleta de material científico para diferentes laboratórios e setores do Museu ao longo dessas décadas.
É uma honra ter seguido os conselhos do meu pai e do professor Arnaldo para vir trabalhar no Museu Nacional. Quando o Museu for reaberto em 2026, certamente já estarei aposentado, morando com minha nova esposa Silvana em Rio Bonito. Vou fazer questão de vir com ela e tenho certeza que vou chorar de alegria. As lágrimas vão rolar por ver que as futuras gerações também poderão se encantar com o Museu Nacional, assim como eu me encantei desde a infância vindo com meu pai, assim como meu filho também sempre esteve comigo, sem falar em tudo o que vivi aqui trabalhando e tendo esses amigos que me ensinaram tanto. Vai ser muito bonito! E vou poder dizer o versículo bíblico que guardo comigo: “Até aqui, nos ajudou o Senhor”.
Um abraço para cada um de vocês!
Cláudio José Fernandes da Costa
Servidor técnico de Laboratório e Gerenciamento de Coleções no Setor de Malacologia do Departamento de Invertebrados do Museu Nacional/UFRJ
Conteúdo do Harpia 31, dezembro de 2024.