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Em busca de Emília Snethlage: mestranda reconstitui expedições no Ceará e estuda acervo

A ornitóloga e zoóloga alemã Emília Snethlage foi uma naturalista-viajante do Museu Nacional entre 1922 e 1929. Pioneira em diversas áreas da ciência, ela foi a primeira mulher a liderar uma instituição científica na América do Sul, ao assumir a direção do Museu Paraense Emílio Goeldi. Um século depois, a mestranda em Zoologia, Aline Ariela, está resgatando as pesquisas de Snethlage no estado do Ceará. Isso envolve refazer expedições, consultar suas anotações e publicações, além de estudar aves depositadas no Museu de Berlim, entre outros locais.

A mestranda Aline Ariela fotografando peles em Berlim. Foto: acervo pessoal
A mestranda Aline Ariela fotografando peles em Berlim. Foto: acervo pessoal
O grande encontro de Aline Ariela com Snethlage pelas pesquisas 

A primeira etapa foi a busca das peles no Museu Nacional/UFRJ e no Museu Goeldi. Posteriormente, Aline, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Zoologia (PPGZoo) do Museu Nacional/UFRJ, junto com outros pesquisadores, seguiu os passos da ornitóloga, visitando locais como Camocim, que fica no litoral, e Ipu, na Serra da Ibiapaba. Durante essas expedições, Aline coletou dados e comparou com os registros históricos deixados por Snethlage, que descreveu quatro espécies e cinco subespécies, onde três são consideradas espécies plenas: Picumnus limae Snethlage, 1924, Sclerurus cearensis Snethlage, 1924 e Hemitriccus mirandae (Snethlage, 1925).

Aline Ariela e o processamento de animais em campo
Aline Ariela e o processamento de animais em campo

Em 2023, Aline foi à Alemanha pesquisar no Museu de Berlim as amostras de aves coletadas por Snethlage e seus preparadores Oscar Martins e Francisco de Queiroz Lima no Brasil. Teve a oportunidade de conhecer a casa onde Snethlage nasceu, em Gransee, no estado de Brandemburgo, visitando a igreja luterana onde o pai dela foi pastor e o mausoléu da família.

Mausoléu da família de Snethlage na Alemanha
Mausoléu da família de Snethlage na Alemanha

“Isso me deu um contexto mais completo da vida dela. A minha pesquisa, embora focada em ornitologia, também envolve um grande componente histórico sobre essa cientista. Além disso, quando estudo as amostras na minha dissertação, eu descrevo essas peles e faço um resgate histórico delas, algo que ninguém havia feito até agora.O principal objetivo do meu trabalho é localizar e catalogar exatamente onde estão as amostras coletadas nas expedições no Ceará”, destaca Ariela, que tem o professor do Museu Nacional/UFRJ, Marcos Raposo, como orientador. Seu coorientador é o professor Marco Aurélio Crozariol do Museu de História Natural do Ceará, vinculado à Universidade Estadual do Ceará. Conta ainda com contribuições da professora Renata Stopiglia do Museu Nacional. 

A casa da família de Emília Snethlage
Aline Ariela na casa da família de Emília Snethlage
Curiosidades revelam personalidade de Snethlage 

Henriette Mathilde Maria Elizabeth Emilie Snethlage preferia ser chamada de Emília Snethlage. Entre as descobertas mais marcantes, Aline destaca relatos sobre a personalidade de Snethlage, descrita como uma mulher determinada e adaptável, que usava longos cabelos e vestia-se de acordo com as expectativas sociais da época para ser aceita nas comunidades onde trabalhava. Há também histórias de sua coragem, como o incidente em que, após uma piranha morder seu dedo na Amazônia, ela mesma realizou a amputação para evitar uma infecção grave. E fez isso sozinha quando ninguém mais teve coragem.

Emília Snethlage entre colegas no Museu Paraense. Foto: Acervo Museu Paraense Emílio Goeldi
Emília Snethlage entre colegas no Museu Paraense. Foto: Acervo Museu Paraense Emílio Goeldi

 Snethlage trocava muitas cartas com sua família, principalmente com seu irmão, Emil, e seu sobrinho, que também seguiu os passos da tia na ciência. “Essas cartas são preciosas para entender não só suas pesquisas, mas também sua vida pessoal e os desafios que enfrentava”, explica Aline. Ela conta que esse trecho do dedo amputado foi relatado de forma trivial, logo mudando de assunto. 

O legado de Emília Snethlage 

A pesquisa de Aline revela que Emília Snethlage foi pioneira em muitos aspectos: a primeira mulher a descrever uma espécie de ave no mundo, uma das primeiras doutoras na Alemanha, além de ser a primeira mulher a dirigir uma instituição científica na América do Sul. Na Amazônia, Snethlage fez várias contribuições pioneiras.

Emília Snethlage
Emília Snethlage

“Ela realizou extensas expedições na região, sendo uma das primeiras cientistas a mapear e documentar a avifauna amazônica de forma sistemática. Ao longo da carreira, Snethlage descobriu novas espécies de aves e descreveu suas características em detalhes, contribuindo significativamente para o conhecimento da avifauna brasileira”, destaca a mestranda Aline Ariela.  

Ela informa que essas expedições ajudaram a abrir caminhos e a explorar áreas que até então eram pouco conhecidas ou inexploradas. Em 1910, Snethlage realizou uma expedição ao Ceará, acompanhada do preparador Oscar Martins, visitando Camocim, Ipu e a Serra de São Paulo. Em 1915, organizou uma segunda expedição ao Ceará, realizada pelo preparador cearense Francisco de Queiroz Lima, que coletou aves em Mondubim, Ladeira Grande e Serra do Castelo. Essas expedições resultaram em aproximadamente 600 amostras de aves e três táxons novos: Picumnus limae (1924), Sclerurus cearensis (1924) e Hemitriccus mirandae (1925). Além disso, ela foi uma das primeiras mulheres a conduzir pesquisas de campo de longa duração na Amazônia, enfrentando desafios significativos devido às condições adversas e ao isolamento. 

Contudo, sua trajetória também é marcada por adversidades. Durante a Primeira Guerra Mundial, ela foi afastada da direção do Museu Paraense Emílio Goeldi devido à sua nacionalidade alemã. Após a guerra, enfrentou dificuldades para retomar sua posição, sofrendo perseguições e sendo alvo de diversas acusações infundadas, como a de que retirava alimentos dos animais do zoológico para dar aos funcionários. Na verdade, ela distribuía o que sobrava, mantendo os animais bem alimentados também. 

Por essas pressões políticas, Emília Snethlage foi exonerada em 1921 e, em 1922, veio para o Rio de Janeiro, trabalhar como naturalista-viajante no Museu Nacional até o fim de sua vida. Parte do material coletado por ela foi transferido para o Museu Nacional, incluindo aves e mamíferos, e outros espécimes foram enviados a museus europeus, como o Museu de Berlim, que Aline foi pesquisar. Ainda hoje, a extensão completa de seu material, especialmente referente às expedições no Ceará, é desconhecida. Cabe situar que Snethlage foi contemporânea de Bertha Lutz e de Edgar Roquette-Pinto. 

E pensar que Snethlage começou a estudar formalmente quando tinha mais de 30 anos. Apesar de tanto destaque nas ciências, Aline Ariela relata que Snethlage ficou feliz quando confundiram seu nome e a colocaram como Emílio, como se fosse um reconhecimento que ela produzia ciência assim como os homens. Ela faleceu durante uma expedição em Porto Velho, Rondônia. Foi enterrada, mas seus restos mortais com o tempo foram perdidos, talvez por mudanças no cemitério. Aline teve acesso a documentações dessa época, mas restam lacunas ainda. Na visita à Alemanha, a mestranda viu as homenagens mantidasna frente da igreja, que tem uma placa falando sobre a vida dela, e no mausoléu da família, mesmo sem conseguirem localizar seu corpo para transferi-lo. Infelizmente, em frente à casa não tem nenhuma menção. Não se sabe as definições na época. 

Como surgiu a ideia dessa pesquisa 

A admiração foi transformada em projeto de mestrado! Aline Ariela já conhecia a renomada ornitóloga Emília Snethlage, mas foi durante a pandemia de Covid-19 que seu interesse pela cientista se aprofundou, graças a uma série de vídeos que assistiu sobre sua vida. Inspirada, ela discutiu com o professor Marco Crozariol sobre a possibilidade de desenvolver um trabalho focado nas expedições de Snethlage no Ceará, que aliás é sua terra natal. Com o projeto, falaram com o professor Marcos Raposo. Ela já estava envolvida no Setor de Ornitologia do Museu de História Natural do Ceará, criado em parceria com o Museu Nacional. Quando defendida, a dissertação de Aline estará disponível para consulta nos sites da UFRJ, onde todos terão acesso a imagens e mais informações inéditas. 

 

Matéria da edição Nº 29 do Harpia.

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