Por meio de ações de monitoramento, prospecção e resgate arqueológico estão sendo evidenciados fragmentos de objetos associados ao cotidiano das pessoas que viveram e trabalharam no Paço de São Cristóvão ao longo do tempo, assim como os processos de transformação no edifício. O professor Marcos André Torres de Souza, do Departamento de Antropologia, é o coordenador geral dessas atividades de pesquisa, iniciadas em maio de 2021, e nos traz os destaques nesta edição do Harpia.
Ele explica que essas pesquisas estão sendo realizadas por duas razões. Uma é pela necessidade de mitigar impactos ao patrimônio arqueológico: sempre que um bem é afetado deve ser realizada uma pesquisa arqueológica. A outra razão é a oportunidade de conhecermos melhor o Paço de São Cristóvão do ponto de vista da arqueologia, completando os conhecimentos que já temos sobre sua história e arquitetura. “Esse projeto dialoga muito de perto com essa produção científica já feita, com o projeto arquitetônico de reconstrução e com o projeto museológico”, destaca o arqueólogo Marcos André, que é também professor do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (PPGArq) e coordenador do Laboratório de Arqueologia Histórica do Museu Nacional/UFRJ.
Estão sendo feitas escavações em diferentes pontos do palácio e na área externa por uma equipe de arqueólogos e estudantes, revelando áreas de deposição arqueológica com vestígios do cotidiano e estruturas arquitetônicas que estavam encobertas. “Temos no Paço de São Cristóvão uma espécie de mosaico de diferentes níveis de ocupação, com diferentes transformações na sua construção, que ainda precisamos entender”, explica Marcos André.
Os pesquisadores já sabiam que algumas estruturas podiam existir pelas documentações existentes sobre o Paço de São Cristóvão. “Sempre que iniciamos uma pesquisa arqueológica não temos ainda conhecimento sobre o grau de preservação das estruturas que iremos encontrar. Como o Paço de São Cristóvão tem desde sua origem muitas plantas e desenhos, isso nos deu indícios importantes. No caso da capela, por exemplo, nós já sabíamos, então fizemos sondagens para investigar a área. A parte que encontramos está bem preservada e ainda continuaremos a escavação em partes onde hoje ainda existem escoramentos”, explica Marcos André.
Achados inesperados evidenciam estruturas arquitetônicas
Durante o trabalho de arqueologia histórica estão sendo revelados alguns achados de interesse. “Um deles é uma área de ligação muito interessante que ligava o Pátio do Chafariz ao Jardim das Princesas. Esse espaço apresenta um piso com blocos rochosos muito espessos, perfeitamente encaixados, e com desenhos simétricos muito elegantes. Não sabíamos da existência desse piso, que era certamente de uma área de trânsito ligada à Família Real. O fogão também foi um achado absolutamente inesperado. Até tínhamos a informação de historiadores e arquitetos que estudaram o Museu, que tinham cozinhas privativas dentro do palácio. Mas não sabíamos ainda que iríamos encontrar aquela cozinha e naquele lugar”, enumera Marcos André.
Ele explica que o fogão é uma estrutura de muito interesse arqueológico, porque ainda não temos conhecimento de outros exemplos no Brasil. “Esse modelo foi desenvolvido na França no século XVII. Principalmente no século XVIII e início do século XIX, ele começou a ser usado por pessoas que estavam no topo da pirâmide social em diversas áreas das Américas. Sabemos que há registros desse tipo de fogão nos EUA, na residência de campo de Thomas Jefferson e também em residências de governadores. Foi a primeira vez que ele apareceu no Brasil”, destaca o professor e arqueólogo Marcos André.
O modelo desse fogão é diferenciado dos demais porque tem várias bocas, assim como os que temos atualmente em casa. “Naquele momento, isso fez uma diferença muito grande por permitir o preparo dos alimentos em chamas individualizadas, favorecendo preparos específicos. Com isso favoreceu a emergência da alta cozinha francesa, quando se tornou possível servir diferentes pratos, incluindo entrada, prato principal e sobremesa. Antes, se usava um único fogo para todos os preparos “, contextualiza o professor, informando que estão ampliando essas escavações e percebendo que ele é maior do que os pesquisadores supunham inicialmente.
Esse fogão está no andar térreo do Torreão Sul do Paço de São Cristóvão, que é uma expansão do prédio construída a partir de 1820, na época de D. Pedro I. As evidências até o momento indicam que ele ficava localizado em uma área interna. No andar de cima, ficava uma sala privativa de refeições do Imperador. “Muito possivelmente esse fogão está associado a uma atividade privada da Família Imperial, por isso a descoberta da localização dele também é interessante para as nossas pesquisas arqueológicas, que ainda vão avançar mais para confirmar nossas hipóteses”. Até 2018, ele estava encoberto por um piso.
“Por ter me dedicado, na minha trajetória acadêmica, a estudar segmentos menos privilegiados da sociedade brasileira no passado, essa experiência está sendo diferente”, destaca o professor, que chegou ao Museu Nacional/UFRJ em 2015, mas já visitava o Museu na infância. “Às vezes, estou acompanhando a escavação e me vem as lembranças de quando eu passeava ali quando eu era criança. É muito legal essa memória afetiva, que acabamos evocando neste momento de reconstrução, como uma experiência retrospectiva”, relata.
Áreas especiais com artefatos de interesse
Até o momento foram encontradas áreas especiais para as pesquisas arqueológicas com a ocorrência de diferentes artefatos. Ao lado da estrutura onde ficava a Casa da Guarda, localizada na frente do palácio, foi descoberta uma área de deposição arqueológica. “Essa área está associada aos trabalhadores, tanto oficiais quanto escravizados. Encontramos, por exemplo, objetos de uso cotidiano descartados, incluindo vidros lascados, que eram usados como ferramentas das pessoas escravizadas. É uma evidência muito interessante, do ponto de vista arqueológico, sobre a presença delas ali“, informa o professor Marcos André.
Eles descobriram outra área com uma grande deposição arqueológica, na parte externa do Torreão Sul, onde devia existir um refugo do palácio. “Ainda iremos analisar esse material vasto, com itens interessantes, mas temos como hipótese que ele tenha relação com a primeira metade do século XIX e talvez com a própria atividade de cozinha onde descobrimos o fogão”, aponta. Estão sendo encontrados também os chamados restos faunísticos, que são ossos de animais usados nas refeições. Esses e outros achados, que incluem inúmeros itens ligados ao cotidiano do Paço, permitirão novos entendimentos sobre as práticas culturais e sociais dos que ali viviam e trabalhavam.
Pesquisas como ferramenta para a reflexão social
Essas atividades arqueológicas no Paço de São Cristóvão tem uma dimensão pública e também uma dimensão científica. Com elas serão abertas novas oportunidades para alunos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia (PPGArq) relacionadas a essas descobertas. “Nossa expectativa é usar essa coleção que está sendo gerada, nas pesquisas científicas dos nossos estudantes, além de oferecê-las para avaliação dos responsáveis pela parte expográfica do Museu”, ressalta o professor.
As pesquisas estão revelando a vida cotidiana da Família Real e também a vida dos que estiveram no lugar. “Assim, podemos mostrar não somente uma Família Real que vivia no seu próprio mundo, com suas práticas próprias, mas também a experiência das pessoas que trabalharam no palácio, tanto escravizados como trabalhadores livres. Nossa ideia é usar essas informações sobre o Paço de São Cristóvão como uma ferramenta de reflexão para a sociedade, pensando as distâncias sociais que separavam as práticas das elites daquelas ligadas ao povo brasileiro, das pessoas comuns”, explica Marcos André. Segundo ele, “a arqueologia permite esse tipo de reflexão porque estamos lidando com um tipo de fonte que é bastante democrática, já que virtualmente todas as pessoas deixam marcas da sua passagem. “Temos acesso a essa materialidade e acreditamos que ela pode ser uma ferramenta interessante de reflexão sobre a formação da sociedade brasileira, de forma mais abrangente, crítica e reflexiva, adianta o professor.
Ciência, educação e divulgação científica
Essas novidades foram apresentadas, no final de outubro, na Semana de Arqueologia Histórica do Museu Nacional/UFRJ – SAHIST. Em colaboração com o Laboratório de Processamento de Imagem Digital (LAPID) os participantes puderam conhecer, por meio de óculos de realidade aumentada, as atividades desenvolvidas no Paço de São Cristóvão pelo Laboratório de Arqueologia Histórica. Esse trabalho de pesquisa arqueológica prevê atividades com a comunidade de São Cristóvão e também, por meio de parceria com a Seção de Assistência ao Ensino (SAE), atividades junto a escolas.