“Reconvexo” é uma palavra inventada por Caetano Veloso para dar conta de algo que não tinha nome. E intitulei assim a obra que criei a partir de uma fotografia de um dos espaços queimados do Paço de São Cristóvão, onde bordei linhas de cores, expressando que o Museu Nacional/UFRJ está ressurgindo à vida. Fotografei em setembro de 2019, durante uma visita oferecida à comunidade. Ela nos mostra como a vida e a ciência estão a re-habitar os espaços, porque o conhecimento e a memória não podem ser mortos.
E isso reflete muito a experiência que estou aprendendo com o corpo social, sobre esse fazer e refazer. Aliás, fico impressionada e admiro a dedicação de todos neste momento de reconstrução. Da mesma forma, a trajetória dos cientistas brasileiros e cada experiência que estou tendo com a pesquisa científica do meu doutorado, observando a vida dos migrantes venezuelanos.
Sou mexicana e entrei no Museu em 2018, na última geração antes do incêndio. É uma oportunidade incrível estar nesse espaço que tem tanta história. As aulas do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS) abriram a minha mente para as possibilidades de pesquisa. Antes, eu pensava que a antropologia poderia ajudar a compreender as experiências dos imigrantes. Graças ao Museu, hoje consigo perceber que a partir da migração podemos explorar de tudo: a forma como as pessoas fazem vida cotidianamente em meio de relações de poder, os processos de formação do Estado, e a maneira como as categorias dão forma as vidas, enfim: tudo pode ser repensado a partir da antropologia na medida em que a etnografia torna os conceitos analíticos em questionar constantemente desestabilizadas pelo campo. Isso para mim é uma grande descoberta. Precisamos fazer perguntas incômodas e desafiadoras, que não cabem nas caixinhas tradicionais de algumas áreas. Assim como fala a minha orientadora Adriana Vianna, a antropologia é uma experiência de conhecimento descolonizador, na medida em que ao mesmo tempo em que tenta produzir inteligibilidade para certos processos, a vida sempre foge dali; e o grande desafio não é produzir trabalhos fechados, mas dar lugar nas nossas escritas para as incertezas e aquilo que permanece incompreensível.
Trabalho de campo físico e virtual no território dos imigrantes venezuelanos
Resumidamente, estudo como é administrada a imigração venezuelana no Brasil, que é construída como um problema, e como, a partir da Operação Acolhida, se constrói uma suposta solução para administrar e controlar essa população. Isso envolve o engajamento de muitos atores nesse universo, abrangendo aspectos sociais, políticos e morais; simultaneamente condensa várias camadas de tradições administrativas no controle de populações e territórios. Assim, minha pesquisa mapeia as formas mediante as quais o controle migratório e fronteiriço é estabelecido a partir da tutela e o cuidado, e ao mesmo tempo, diz muito sobre o que é o Brasil nesse momento em particular em que observamos um protagonismo de novos e velhos atores empresariais, religiosos e militares na política.
Comecei meu trabalho de campo em Roraima, em julho de 2019. Fiquei diante de um Brasil tão gigante ao perceber que Boa Vista fica mais ao norte do que Quito, no Equador, onde já tinha morado, e que o Brasil compartilha fronteira com dez dos doze países da América do Sul! Aquele campo inicial foi um divisor de águas para mim, porque foi bem no momento em que estava se formando o modelo militar e humanitário para o programa chamado Operação Acolhida. Estavam entrando inúmeros venezuelanos por mês e fiquei observando como se dava todo aquele universo, sendo algo muito forte para mim repensar o que, até então, eu pensava que fosse o ideal para os estudos sobre as migrações.
Muitas situações me chocaram durante esse trabalho de campo. Mas aqui vou falar para vocês sobre o protagonismo dos rumores na configuração do cotidiano. Nos “abrigos” – bem entre aspas – não tinha como ficar todos que chegavam. E também algumas pessoas não queriam ficar ali com o controle muito forte do militarismo e das agências humanitárias. Assim, um número considerável de migrantes estava dormindo nas ruas e a sensação de insegurança era imensurável, tanto para quem dormia nos ruas como nos abrigos. Foi impactante perceber o papel dos rumores sobre o controle que estava circulando ali, o medo que as mães venezuelanas tinham como o roubo ou adoção ilegal de suas crianças, sobre o desaparecimento de pessoas, sobre a possibilidade dos abrigos e a fronteira fecharem, e sobre os processos de deslocamento a outras cidades brasileiras. E como se os rumores tivessem vida própria frente a tanta incerteza, e o engajamento neles as vezes permitia aos agentes de Estado incrementar o controle e outras vezes aos migrantes se revelar das decisões institucionais que diziam protegê-los.
Eu estava em uma certa posição de privilégio, porque eu fazia ao mesmo tempo uma consultoria na região. Os abrigos eram fechados para a pesquisa e havia um direcionamento sobre quem eu poderia conhecer e conversar, com dias e horários pré-estabelecidos. Até porque eles queriam passar a imagem de uma experiência de sucesso para a Operação Acolhida. No primeiro dia de pesquisa, eu tinha um roteiro a seguir. Mas depois eu consegui ir além dos roteiros oficiais através de outros circuitos ou interações espontâneas.
Minha posição ali foi meio como a de uma camaleoa. Como falo espanhol fluentemente, por ser minha língua nativa, algumas vezes eu passava aos olhos dos que controlavam o lugar como uma venezuelana, até pelas minhas características físicas. E essa ligação com a língua passava mais confiança aos imigrantes que estavam participando da minha pesquisa. Em outros momentos, eu era vista como uma antropóloga desenvolvendo minha pesquisa para a academia. E também eu era considerada uma consultora e isso abria as portas para outros espaços nesse território de imigrantes.
Com a pandemia de Covid-19, um grande desafio foi dar continuidade à minha pesquisa por meio da etnografia virtual. Ao mesmo tempo foi uma descoberta interessante, porque há muitas relações acontecendo no ambiente on-line e não podemos mais deixá-las de fora. Isso também me permitiu estabelecer contato com venezuelanos em muitos outros lugares do Brasil. Temos que olhar para além do que consideramos tradicionalmente como território.
Minha chegada ao Museu
Meu companheiro quis fazer seu doutorado no Instituto de Planejamento Urbano Regional da UFRJ, e eu decidi vir junto com ele. Viemos morar no Rio em 2017. Fiquei trabalhando com outros projetos que eu tinha fora do Brasil e aprendendo a língua. Eu já sabia que a antropologia social do Museu Nacional era excelente, e a antropologia brasileira, assim como a mexicana, era muito potente. Sabia que era difícil ingressar e eu me candidatei assim mesmo. Fiquei muito feliz por ter conseguido.
Por coincidência, meus pais e minha tia vieram me visitar, e enquanto eu fazia a prova eles conheceram as exposições do Museu. Nem acreditei quando vi que realmente tinha conseguido ingressar no Museu Nacional/UFRJ, acho que foi a visita deles que me deu boa sorte. Fiquei totalmente feliz. Ao mesmo tempo, teve o desafio da língua, porque precisava ler todo o material teórico e complexo, em português, inglês ou francês, e compreendê-lo para as reflexões necessárias para as aulas.
Achei linda essa experiência de sair do Estácio, onde eu morava, atravessar Cidade Nova, pegar o metrô e andar pela Quinta. Senti muita diferença pelo calor, porque antes eu estava morando nos Andes, no Equador, onde fiz meu mestrado e pesquisei a imigração dos haitianos. Mas apesar de subir até o Paço de São Cristóvão e ficar toda suada, eu considerava tudo tão incrível, especialmente pelas aulas que abriram a minha cabeça para a antropologia. Lembro muito dos cantinhos do Museu! No horário do almoço, eu gostava de ficar sozinha observando a Quinta lá dos fundos. Hoje, eu sinto muita vontade de refazer todas as disciplinas para ouvir novamente os professores e os debates com os estudantes.
Como migrante, continuo aprendendo a deixar para trás muitas coisas e a estabelecer nos lugares que escolhi para morar novas amizades, que são como novas famílias. Meus pais estão para se aposentar e espero que isso facilite que que venham me visitar mais alguma vez no Rio. É muito caro: para você ter uma ideia, é mais barato ir para a Espanha ou a Inglaterra do que ir para o México. Futuramente, eu gostaria de reforçar as pontes entre a antropologia brasileira, mexicana e equatoriana.
A cada dia amo mais conhecer a cidade do Rio de Janeiro, escutar seus segredos e perceber as tantas camadas da história, que, para mim, é muito incrível!
Fico por aqui.
Gracias e um abraço,
Iréri Ceja
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ.