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Sítios arqueológicos no Alto Amazonas revelam ocupações antes dos europeus

Arqueologia comunitária: preparo para o transporte de peça de cerâmica encontrada em sítio

Moradores de Tonantins, no Amazonas, começaram a enfeitar suas casas com peças de cerâmica que encontraram enterradas ou reveladas pelas águas dos rios. Nelas, tinham ossos e até fios de cabelos, que eles descartaram. Mas, afinal, o que seriam e quando foram feitas? A curiosidade da comunidade rendeu uma dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional/UFRJ (PPGArq), apresentando dados importantes sobre a arqueologia do lugar. E está em andamento uma pesquisa de doutorado sobre prospecção de sítios arqueológicos com tecnologia remota.

Existe um fascínio estético e eles chamam essas urnas funerárias da tradição Polícroma da Amazônia de “pote”. O interesse chegou às aulas que o historiador e professor Júlio Silva ministra no município. E ele convidou o amigo Marcus André Rabelo, na época graduando de arqueologia na Universidade Estadual do Amazonas, para realizar uma visita à Tonantins. O material foi enviado para Manaus pela comunidade e usado em projeto de iniciação científica e em TCC.

No final do curso, Marcus logo pensou em aprofundar essa pesquisa no seu mestrado no Museu Nacional/UFRJ, que ele sonhava em ingressar desde que foi visitar anos atrás nas férias. Foi aprovado no PPGArq tendo a professora Denise Cavalcante Gomes como orientadora. O Museu Nacional possui uma longa história de investigações arqueológicas na Amazônia, que remonta ao século XIX. Em seu trabalho de campo, Marcus passou 8 meses em Tonantins e aproximadamente 6 meses em São José do Amparo, localizado a cerca de 900km de Manaus, vivendo o dia a dia das comunidades e, pouco a pouco, estreitando laços e sendo acolhido. Lá, ele é conhecido como o “Moço do Pote”.

‘Morte e Vida no Alto Solimões’

A dissertação “Vida e Morte no Alto Solimões: Arqueologia Comunitária em São José do Amparo, Tonantins-AM” foi defendida em 2020. Ela documenta a presença de cerâmica da fase Napo (1118-1480 d.C.), originária do Equador, associada aos indígenas Omagua, e esse é um grande achado desta pesquisa. “Até o momento, essa cerâmica ainda não havia sido encontrada em trabalhos arqueológicos no território brasileiro. Como sua localização de origem ficaria a 700km de distância, não fazia sentido a dispersão até ali. Então, buscamos entender como essa peça veio para cá, e as fontes históricas informaram que os Omagua ocuparam a região séculos atrás”, explica Marcus.

Marcus ficou 14 meses, no total, desenvolvendo seu projeto de mestrado no Alto Solimões

A pesquisa documenta um grande sítio arqueológico de terra preta arqueológica (1250m X 700m), às margens do Rio Solimões, e atesta uma grande atividade funerária, com enterramento em urnas cerâmicas com pinturas muito elaboradas. Essas informações indicam que essa região foi intensamente ocupada antes da chegada dos europeus. “Observamos que a forma de sepultamento é diferente de outras existentes na literatura da arqueologia na região, apresentando as urnas funerárias enterradas em grupos“, destaca Marcus Rabelo.

Além disso, ao longo das pesquisas, o arqueólogo conseguiu fazer uma correlação entre essa cerâmica da fase Napo com a cerâmica de São Joaquim. Ela foi nomeada assim na década de 1960 pelo alemão Peter Paul Hilbert, que documentou cientificamente a região e colocou no estilo da cerâmica o nome do município. A pesquisa faz uma análise comparativa com as peças encontradas e as já presentes nos estudos de Hilbert, onde são observados os estilos decorativos cerâmicos, suas cores, desenhos e formatos das peças. Cinquenta anos depois, a paisagem está modificada pelo curso das águas do Rio Solimões, mas Marcus pesquisou em alguns pontos semelhantes. Muitas cerâmicas e urnas funerárias foram descobertas pela comunidade quando foram abertas ruas no local e os tratores passaram por cima de várias delas, deixando-as em cacos.

Cerâmica da tradição Polícroma da Amazônia com decoração acanalada

A comunidade convidou o Marcus para desvendar suas curiosidades sobre o “pote”, mas somente parte dela quis participar ativamente desse projeto de arqueologia comunitária. O convívio o ajudou a perceber as dinâmicas, a estabelecer diálogos, e, por fim, o maior engajamento foi dos mais jovens de Tonantins. Foram diferentes experiências e linhas encontradas pelos pesquisadores durante essa pesquisa. “Como manauara, essa pesquisa contribuiu para eu resgatar minhas raízes, aprendendo muito com os momentos que vivi nas comunidades, com as longas distâncias, com as restrições de conforto e alimentação, e com os dias que fiquei adoecido. E também com a sabedoria das pessoas que tive contato, com o acolhimento e engajamento ao projeto. Cada experiência me deu certeza que o meu lugar é aqui e que continuarei morando no Amazonas. Pretendo avançar essas pesquisas futuramente no doutorado”, resume o arqueólogo Marcus Rabelo, o “Moço do Pote”.

Passado contado pelos cronistas será revelado pela alta tecnologia

Para conhecer ainda mais os tipos de sítios arqueológicos dos antigos ocupantes pré-coloniais, a cronologia e os padrões de assentamento (tipos de moradias), a professora Denise Gomes está orientando um projeto de doutorado na mesma região. Os estudantes chegaram a coincidir um trabalho de campo juntos com a professora Denise. Esses trabalhos são complementares. O doutorando João Paulo Cunha contribuiu na execução de mapas e na caracterização geomorfológica da comunidade com fotos aéreas e de satélite, que estão na dissertação de Marcus.

Vista da Comunidade São José do Amparo, no Alto Amazonas. Imagem: João Paulo Cunha

João Paulo é engenheiro agrimensor, que trabalhou no Exército e tem experiência em cartografia. Em Tonantins, está usando os trabalhos de Hilbert, da década de 1960, e do Marcus como referência. Seu objetivo está sendo explorar o uso de sensores remotos, drones e imagens de satélite, de forma que consiga identificar os diversos tipos de sítios sem a necessidade de escavar literalmente. A partir da série de dados já coletados, será usada tecnologia remota para detectar possíveis locais e ele voltará ao Alto Amazonas para confirmá-los. Como não há autorização para escavações nessa pesquisa, serão feitos levantamentos tradicionais, com caminhamentos e levantamentos de superfície, fotografando o que estiver exposto, e orais, ouvindo a comunidade.

Estão sendo usados também informações de cronistas, que são os relatores oficiais a mando da Coroa. Na época, o conhecimento científico era limitado, mas esses dados já contribuíram para identificar que os Omagua viveram nessa região, séculos atrás. E isso explica o motivo de ali ter cerâmica da fase Napo.


João Paulo Cunha em casa tradicional de comunidade assentada em sítio arqueológico São Raimundo do Universo

Por meio dessa pesquisa de doutorado será possível conhecer a história das pessoas que habitaram essa região, séculos antes da chegada dos europeus e suas diversas formas de ocupação no território. “Escolhi a região porque ela sempre foi muito cobiçada pelos colonizadores, que tinham todo um imaginário a partir desses relatos dos cronistas. Acreditava-se em Cidade de Ouro, Cidade da Canela, mas ninguém ainda sabia concretamente o que existia por lá, sendo especulações. Então, na minha pesquisa, estou incluindo as crônicas dos séculos XVI ao XVIII, que relatam a existência ali de grandes civilizações, que eles moravam em ilhas, plantavam e tinham uma organização social, por exemplo”, conta João. Os resultados poderão confirmar e até mesmo ampliar as informações desses antigos cronistas.

Imagens geradas por João Paulo Cunha, doutorando do Museu Nacional/UFRJ

Foram sobrevoadas com drone diferentes comunidades com diversos sítios arqueológicos. João Paulo informa que seu foco é explorar as Geociências e insumos cartográficos, usando material de acesso completamente livre, incluindo o software, para favorecer a difusão de conhecimentos.

Prospecção arqueológica tradicional no Rio Jandiatuba, em São Paulo de Olivença. Foto: João Paulo Cunha

O trabalho está usando a primeira carta topográfica da região, elaborada pelo padre Samuel Fritz, que morou na região por 40 anos, na virada do século XVII para o XVIII, e era cartógrafo. “Nesse documento, ele apresentou as comunidades da época, e eu vou elaborar uma carta topográfica apresentando os sítios arqueológicos, usando a precisão da tecnologia disponível hoje. Sempre precisamos ter alguns cuidados comparativos, até porque ele mediu em léguas e há algumas incompreensões espaciais sobre o tempo relatado, entre outros detalhes”, destaca João Paulo.

O Alto Solimões por João Paulo Cunha

 

 

 

 

 

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