Uma obra em casa da Gamboa revelou em 1996 algo que estava ocultado da sociedade há décadas: o Cemitério dos Pretos Novos. Sob uma camada de concreto estavam amontoados os restos mortais dos escravizados recém-chegados da África. Após a fase de resgate emergencial, a equipe do Programa de Pós-graduação em Arqueologia do Museu Nacional/UFRJ ficou responsável pelas campanhas de escavação. E, agora, mais uma delas está sendo iniciada.
“Nessa nova campanha, será escavada uma extensa área do Cemitério, o que possibilitará o detalhamento das práticas inumatórias e o aprofundamento dos estudos paleoepidemiológicos”, explica a professora Andrea de Lessa Pinto, que coordena essa nova campanha, que está sendo financiada por meio de recursos de Emenda Parlamentar de deputada federal.
Violência e controle social entre os séculos XVIII e XIX
Na região do Valongo, foi promovido um dos maiores esquemas de comércio de escravizados africanos das Américas, sendo representantes explícitos de uma sociedade marcada pela indignidade do comércio de seres humanos. “Trata-se de um local que abriga em seu solo tanto a herança genética africana quanto a memória de uma tragédia social com repercussões na atualidade, o qual vem sendo reconhecido como sagrado por afrodescendentes que passam a conhecer um pouco mais da história de seus ancestrais”, explica a professora Andrea de Lessa Pinto.
Ela informa que esse sítio é único no contexto da Diáspora Africana, uma vez que não foram descobertos nas Américas outros espaços funerários dedicados exclusivamente aos escravizados recém-chegados da África. “Revela, portanto, toda a indignidade com que eram tratados os seres humanos mais rebaixados na escala social do período colonial/Imperial, abaixo mesmo dos cativos já integrados ao sistema. Certamente nunca vi algo semelhante, haja vista que a morte, e consequentemente as práticas funerárias, são normalmente revestidas em maior ou menor grau por sentimentos de respeito e sacralidade. Ao evidenciar a forma como os corpos dos cativos eram tratados, compreendi de fato o que significava serem considerados mercadorias, destituídos de qualquer valor econômico e moral após a morte”.
Os resquícios do período escravocrata foram quase completamente apagados intencionalmente pela especulação imobiliária. Houve um apagamento social dessa memória, e os terrenos foram vendidos sem que os compradores soubessem o que existiu ali. No trabalho “Paisagem, Morte e Controle Social: O Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos no Contexto Escravocrata do Rio de Janeiro nos Séculos XIII e XIX”, os autores Andrea Lessa, Reinaldo Bernardes Tavares e Claudia Rodrigues Carvalho analisam esse fato ao longo da publicação. Leia um trecho: “Sua localização precisa esteve perdida durante décadas após o seu desmantelamento legal em 17 de fevereiro de 1855, através do artigo 1º do Decreto nº 1557, que estabeleceu o regulamento para os cemitérios públicos e particulares da cidade do Rio de Janeiro. Pouco tempo depois as terras onde os cativos recém-chegados encontraram seu destino final foram loteadas e ocupadas por residências. Mas naturalmente ninguém gostaria de viver sobre os ossos de africanos escravizados e o espaço funerário se tornou invisível, um triste capítulo da nossa história foi propositalmente enterrado sob o passar dos anos e apagado da historiografia e da memória popular”.
Conheça as fases desse trabalho arqueológico
A professora Andrea de Lessa Pinto explica que o primeiro estudo, realizado por Lilian Machado, ocorreu a partir do resgate emergencial dos remanescentes humanos, retirados pelos operários que faziam a reforma na casa do casal Ana Maria de La Merced e Petrúcio Guimarães, sem escavação arqueológica.
Posteriormente, o Museu Nacional/UFRJ foi responsável por todas as campanhas de escavação no Cemitério dos Pretos Novos, por meio do Programa de Pós-graduação em Arqueologia. As intervenções estratigraficamente controladas se iniciaram com a pesquisa para o mestrado de Reinaldo Tavares, orientado pela professora Tania Lima. Na ocasião foi escavada apenas a superfície do Cemitério dos Pretos Novos, uma vez que o objetivo da pesquisa era a sua delimitação espacial para fins de proteção.
As escavações continuaram durante a pesquisa de doutorado de Reinaldo, orientada pela professora Andrea Lessa, quando foi realizado um estudo de arqueologia funerária e de bioarqueologia, com o objetivo de se compreender a dinâmica de formação do sítio, evidenciando as práticas inumatórias realizadas.
Além do início dessa nova etapa de escavação, os remanescentes humanos e a cultura material recuperados no Cemitério dos Pretos Novos continuam sendo pesquisados. E, em 2005, o casal Guimarães criou, com a ajuda de amigos e familiares, a ONG Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos.
Saiba mais:
Um dos trabalhos publicados até o momento é o “Paisagem, Morte e Controle Social: O Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos no Contexto Escravocrata do Rio de Janeiro nos Séculos XIII e XIX”, que detalha as etapas da pesquisa, suas descobertas e faz análises dos fatos, trazendo também informações de publicações históricas. A autoria é de Andrea Lessa, Reinaldo Bernardes Tavares e Claudia Rodrigues Carvalho. Você pode ler esse conteúdo, acessando a uma dessas fontes: